De uma história trágica, um álbum magnífico

Ariel Pink, que descobrimos na alvorada do século XXI, tem atravessado os anos como detentor de uma marca autoral vincada.

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Ariel Pink: figura inconfundível, igual a nenhuma outra — uma nova mitologia tornada corpo e som

“Todo o meu projecto de carreira tem sido agir como um intruso na visão do meu passado. Quando ouço música, tento apreciá-la como quando tinha cinco anos. Estou constantemente a pegar naquele miúdo de cinco anos de forma a não o esquecer. Se eu o esquecer, ele desaparecerá completamente. Porque já não está cá”. Este era Ariel Pink, nascido Ariel Marcus Rosenberg em Los Angeles, no final dos anos 1970, a explicar ao Ípsilon, em 2014, a natureza da sua música. Acabara de editar pom pom, álbum ambicioso, álbum caleidoscópio em que, como nunca antes na sua carreira, géneros musicais, vozes e personagens se sucediam, cruzavam e colidiam canção após canção das 17 que o compunham.

Ariel Pink, que descobrimos na alvorada do século XXI, qual fantasma de um tempo que nunca existiu — as suas canções pareciam saídas de um rádio mal sintonizado em longa viagem de carro (ou de uma cassete descoberta no porta-luvas do tal carro) —, tem atravessado os anos como detentor de uma marca autoral vincada. Se, por um lado, é alguém que reflecte como tantos actualmente este tempo sem tempo, marcado por uma forte nostalgia por todos os passados, vividos ou não; por outro, é uma figura inconfundível, igual a nenhuma outra — uma nova mitologia tornada corpo e som. Está constantemente lá atrás, a mergulhar em farrapos de memória e a tentar reconstruir o que vê — mas, como sabemos, a matéria dos sonhos e da memória é falível.

Ora, é precisamente a impossibilidade de reproduzir com fidelidade o mundo do Ariel Marcus de cinco anos que torna a música de Ariel Pink tão estranha quanto fascinante. Ou melhor, que tornava a música de Ariel Pink tão estranha quanto fascinante. Isto porque, desde que o ouvimos pela primeira vez, aposta da Paw Tracks fundada pelos Animal Collective, em The Doldrums (2000), a sua música de som saturado e voz mutante, de sintetizadores e caixas de ritmo 80s cruzadas com hard-rock e psicadelismos diversos, o seu soft-rock e glam rock e teatro pop, tornou-se uma linguagem em si mesma. No caminho, a estranheza deu lugar à familiaridade.

A obra-prima Before Today já tem sete anos, há quatro conhecemos Ku Klux Glam, editado em colaboração com uma das suas grandes referências, R. Stevie Moore, o decano do lo-fi. Dedicated to Bobby Jameson, o que edita agora, troca a abrangência e o eclectismo de “pom pom” por concisão pop e clareza melódica e, no processo, apresenta-nos o melhor álbum de Pink desde o supracitado Before Today. Um álbum com dedicatória.

Bobby Jameson podia ter sido uma estrela nos anos 1960 mas, entre más decisões de gestão de carreira, álcool e problemas psiquiátricos, acabou devorado por Los Angeles, a cidade que abandonou em 1985 em direcção a um anonimato de que só ressurgiria em 2007. A partir desse ano e até à sua morte em 2015, Jameson apresentou em blogue e na sua conta de YouTube a história trágica da sua vida, marcada por uma solidão insuportável, por uma dor que parece nunca ter conseguido vencer. Não surpreende que Ariel Pink se tenha sentido tão tocado pela história do cantor ao ponto de lhe render homenagem no seu nono álbum em nome próprio. Bobby Jameson, o cantor folk-rock, o filho de Los Angeles que acabou mastigado e cuspido por ela, podia ter sido Ariel Pink.

Em Dedicated to…, cabe o lado clownesco do Arthur Brown de Fire — surge logo a abrir, no gótico psicótico de Time to meet your God (“time to kill your God”, canta também Pink) –, e cabem o órgão Clavinet, caixa de ritmos bem programada e orquestração disco-sound da óptima Death patrol. Cabem visões de pesadelo, à Swans, e corrosão eléctrica Velvet Underground numa canção que cita livremente melodias dos Buggles (Another weekend exibe a facilidade com que Pink mistura habilmente músicas pouco conciliáveis à primeira vista). Neste álbum escorreito como nunca tínhamos ouvido ao seu autor, temos viagem guiada à Sunset Strip e à Sunset Boulevard de ontem — é o tema título e é luminosa como a guitarra de Roger McGuinn nos Byrds, mas divagante o suficiente para enxertar um pedaço do instrumental de Light my fire na composição.

As marcas de Ariel Pink atravessam todo o disco — o som saturado, os sintetizadores apontando à década de 1980, o forma hi-fi com que se cria um ambiente sonoro feito de noite e néon, de vultos e fachadas entrevistos na escuridão. E tal acontece mesmo quando se anuncia a doçura de coração aberto de Feels like heaven, single imaculado, ou a melancolia de base acústica de Another weekend. Ariel Pink despede-se na companhia de um dos convidados do álbum, Dâm-Funk, a cantar com Auto-Tune ligado entre flautas sintetizadas e sugestões P-Funk. “We’re gonna party til the break of dawn”, diz ele — é uma festa que já lá vai, que nunca saberemos se existiu realmente.

Ariel Pink, ao contrário de Bobby Jameson, vai sobrevivendo (aparentemente) incólume em Los Angeles. Vive para contar o que encontra nela, na cidade que nunca existiu. A cidade de Bobby Jameson, a do pequeno Ariel Marcus, cinco anos de idade e uma vida inteira para inventar canções. Criou treze para este disco. Reunidas, formam um álbum que ganha lugar de destaque na sua discografia.

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