A vertigem de Desplechin

Arnaud Desplechin já entusiasmou mais. Mas quem se deixar ir atrás dos fantasmas de Ismael verá que eles trazem algum gozo.

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Mergulho num labirinto ficcional onde nenhum corredor é certo

Apesar de alguns desvios (Esther Kahn, Jimmy P.), o aspecto mais reconhecível como essencial ao cinema de Arnaud Desplechin foi sempre o tipo de construção narrativa a que ele se dedica em Os Fantasmas de Ismael, uma construção labiríntica, a multiplicar personagens e intrigas, e recheada de ecos e, justamente, “fantasmas”, literários ou de outro tipo (autobiográficos, por exemplo). Nisso, faz pensar num Raul Ruiz menos latino-americano e “realista mágico” e mais centro-europeu, mais urbano-depressivo, mais neurótico, características que se estendem aos seus protagonistas (mais o judaísmo, que como legado, condição ou cultura anda a sempre a pairar), protagonistas esses que também não é raro poderem ser vistos como duplos ou projecções do próprio Desplechin, e que são sempre ou quase sempre interpretados por Mathieu Amalric, como volta a ser o caso do Ismael deste filme (um possível duplo “woodyalleniano”, com o seu quê de autocaricarura mais ou menos disforme). Em todo o caso, e num filme como este, Desplechin dirige-se especialmente (não quer dizer “exclusivamente”) aos espectadores regulares dos seus filmes, que apreciarão melhor, como se gozassem duma intimidade só para velhos conhecidos, as inúmeras fintas e reflexos da sua própria obra que o realizador dissemina (a começar pela questão dos nomes das personagens, do já clássico Dédalus a Bloom, de caminho atestando que a pista literária, e em particular James Joyce, nunca estão muito longe).

Nada é inocente, portanto, em Os Fantasmas de Ismael. Nem mesmo o casting, também ele provido de uma carga de sentido que se acumula por cima da narrativa. É o caso da escolha de Laszlo Szabo (actor de vários Godards dos anos 60) para o papel do velho mentor de Ismael (e como ele e Desplechin, cineasta). A personagem poderá ser mais um duplo (por exemplo, e outra vez os fantasmas do judaísmo, de Claude Lanzmann), mas interpretada por uma memória viva da nouvelle vague amplia a questão das figuras tutelares, dos “pais” putativos, comum na obra de um cineasta que, como Desplechin, nunca deixou de incorporar (sobretudo nos primeiros filmes, La Sentinelle ou Comment Je me Suis Disputé) a questão, tão angustiante como libertadora, de filmar numa época pós-nouvelle vague, sendo certo que, através da personagem de Ismael e das suas angústias, este também é um filme sobre a criação artística (embora se deva dizer que a nouvelle vague de Desplechin é mais a do romanesco resnaisiano ou a dos complots e alçapões rivettianos, aliás bem patentes na parte “intriga de espionagem” do filme).

Enfim, e depois há Louis Garrel, a visitar um cinema nos antípodas do do seu pai, com a sua allure de galã a funcionar como uma espécie de Jekyll para o Hyde de Amalric, e as mulheres, Marion Cotillard e Charlotte Gainsbourg, convidadas para um Vertigo irrisório e quase “sitcom” (com uma Carlotta e tudo) onde Ismael tem que conviver — “em directo” — com a mulher do presente e a mulher vinda do passado.

Explicar o sentido de um filme como este, tão esquivo e cheio de fantasmas, tão propenso à “cosa mentale” é secundário. A proposta é a de um mergulho num labirinto ficcional onde nenhum corredor é certo, não a de um concurso de decifração de enigmas. A recompensa é a ficção ela própria, no momento da sua efabulação, nas suas oscilações entre a gravidade, a comédia, e um tom indefinível. Desplechin já entusiasmou mais, ou se calhar já pareceu mais surpreendente (e o filme de algum modo não deixa de reflectir esta possibilidade); mas quem se deixar ir atrás dos fantasmas de Ismael verá que eles trazem algum gozo.

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