Como sobreviver na era das fake news

Åsne Seierstad, a autora do best-seller O Livreiro de Cabul, foi à Feira do Livro de Frankfurt discutir o jornalismo na era dos factos alternativos, numa antevisão do que poderá ser 2019, o ano em que a Noruega será o país convidado do evento.

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Åsne Seierstad DR

Quando Juergen Boos, o director da Feira do Livro de Frankfurt, perguntou a Åsne Seierstad, a norueguesa que se tornou conhecida pelo best-seller O Livreiro de Cabul (ed. Presença), se ela se considera uma romancista ou uma jornalista, esta respondeu-lhe que percebia a questão, já que muitos dos seus livros “podem ser lidos como romances”. Mas, ressalvou, considera-se uma “jornalista a 100%”.

A escritora e premiada repórter de guerra e de investigação, que em Portugal tem também publicados os livros 101 Dias em Bagdad (Presença) e De Costas Viradas para o Mundo – Retratos da Sérvia (Pedra da Lua), esteve esta quarta-feira em Frankfurt, onde a Noruega veio dar sinais de já estar a preparar-se para 2019, o ano em que será o país convidado daquela que é a mais importante feira do sector – à qual trará conhecidos autores como a romancista e jornalista Linn Ullmann (filha da actriz Liv Ullmann e do realizador Ingmar Bergman), os escritores Per Petterson, Jo Nesbø ou Karl Ove Knausgård, e a própria Åsne Seierstad.

Num painel que tinha por tema as fake news, um dos temas abordados em várias discussões desta edição da feira, e em que tinha por companheiro de mesa o premiadíssimo jornalista alemão Hans Leyendecker, que esteve durante anos à frente do departamento de jornalismo de investigação do Süddeutsche Zeitung, Åsne Seierstad defendeu que quando se investiga bastante, quando se pergunta às pessoas o que sentem ou o que fazem, é possível construir personagens complexas, mas isso não é suficiente para agarrar os leitores. "Para que as pessoas se reconheçam no que escrevemos", disse, é preciso uma “narrativa completa e bem contada”: “Temos de ser eficientes e conseguir que o leitor entre na história."

Para ela é importante, especialmente nestes dias, que o leitor tenha em mente que ela é jornalista e que perceba como é que ela trabalha, passo a passo. Que entenda por que é que ela sabe o que Anders Behring Breivik, o assassino em massa da Noruega que é tema de um dos seus livros (One of Us: The Story of Anders Breivik and the Massacre in Norway, ainda não publicado em Portugal), estava a pensar quando matou aqueles adolescentes: “Eu sei porque ele o disse inúmeras vezes à polícia, repetiu-o no tribunal e em cartas. Mas se isso não for explicado, os leitores vão pensar que se trata só de uma coisa horrível."

Quando em 2002 saiu O Livreiro de Cabul, o homem que nele era retratado não gostou do que leu. A jornalista tinha vivido seis meses com ele e com a sua família no Afeganistão, sem ter feito um contrato prévio à publicação do livro. Embora não estivesse acordado que o protagonista teria o direito de ler o manuscrito em primeira mão, quando acabou quis mostrar-lho, pensando que ele ia reflectir, à maneira norueguesa, sobre o que ela tinha escrito. “Isso não aconteceu. Não houve nenhuma reflexão intelectual, a sua reacção foi de raiva pura. Telefonou-me a dizer que iria a Oslo e que tínhamos de reescrever o livro. Perguntei-lhe se tinha incorrecções, eu corrigi-las-ia. Não era disso que se tratava: simplesmente não era assim que se queria ver representado. Percebi que ele nunca iria perceber o que é fazer jornalismo, dar vários ângulos sobre um mesmo assunto; que nunca imaginou que o livro não iria ter só a visão dele, mas também a das suas mulheres, das suas irmãs, dos seus filhos e dos seus parceiros de negócios. Não era o retrato que ele gostava que eu tivesse escrito. Colocou-me uma acção judicial que durou 13 anos, mas ganhei finalmente no Supremo Tribunal”, suspirou. 

Isto fez com que ficasse ainda mais certa de que os jornalistas têm de escrever sobre o que vêem, sobre o que ouvem de diferentes fontes – e de que não podem escrever para fazer as pessoas felizes. E aprendeu várias coisas. Sabe que não conseguirá passar por um outro caso em tribunal na sua vida, por isso tornou-se mais cuidadosa. Nos seus dois últimos livros, quer naquele sobre Anders Breivik como no mais recente, Two Sisters, sobre Leila e Ayan, duas irmãs que partiram para a Síria para se juntarem ao Estado Islâmico, até as fontes anónimas leram as suas citações antes da publicação. “Talvez seja exagerado”, disse ela, “mas até agora não fizeram fazer grandes mudanças nos textos”. 

Em ambos os livros o tema das fake news está presente. Naquele que dedicou ao massacre de Oslo, em 2011, explicou que uma das razões para Anders Breivik se ter tornado um terrorista foi a falta de atenção que recebeu dos média, que não deram importância aos seus ensaios: os média “não queriam ouvir as verdades”, a única forma de lhes chamar a atenção e de ser ouvido era ficar famoso. "Para o conseguir achava que bastava matar dez pessoas, acabou por matar 77”, lembrou Åsne Seierstad, que encontrou um discurso parecido nas duas irmãs que se juntaram ao Daesh. Elas também diziam que na Noruega os média não escreviam sobre a humilhação dos muçulmanos, que não conseguiam emprego por causa dos nomes que tinham. Em certos aspectos, o discurso daquele homem racista e de extrema-direita e das duas combatentes islâmicas aproximam-se. Como se fossem os “melhores piores inimigos”, donos de uma verdade que todos os que estão à sua volta não conseguem ver.

“As pessoas podem viver perfeitamente confortáveis só com um lado da história, algumas até nem se importam de viver assim toda a sua vida", quis lembrar Åsne Seierstad. “Arenas como a Feira do Livro de Frankfurt”, onde se debate e se partilha conhecimento, são fundamentais para evitar que os cidadãos se encerrem “nestes pequenos círculos” que as redes sociais potenciam.

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