A estátua de Vieira e o racismo português

Desde que Marcelo se esqueceu de fazer o seu acto de contrição que a questão do esclavagismo e do racismo português tem vindo a subir de tom entre as elites culturais.

A conversa em torno da escravatura e do racismo português começou a subir de tom em Abril deste ano, quando Marcelo Rebelo de Sousa, numa vista à ilha de Gorée, no Senegal (um antigo entreposto de escravos), resolveu declarar que Portugal tinha reconhecido a injustiça da escravatura ao aboli-la em parte do seu território ainda no tempo do Marquês de Pombal. Dias depois, numa carta aberta, numerosos intelectuais repudiaram as declarações do Presidente da República, essencialmente por duas razões: 1) por não ter havido um pedido de desculpas oficial pela prática do esclavagismo; 2) por tais palavras “reavivaram o branqueamento da opressão colonial implícito na visão do projeto colonial português”.

Como cada vez mais acontece nestes temas, os factos históricos são triturados na Bimby da indignação, resultando daí uma mistela impossível de digerir por quem aprecie discussões contextualizadas. Facto histórico: é absolutamente verdade que uma triste memória herdada do Estado Novo ainda insiste em considerar o colonialismo português como excepcional em matéria de integração e “humanidade” – uma tese ridícula que deve ser combatida com todas as forças, até porque estamos a falar de acontecimentos que têm cinco ou seis décadas e de muita gente que ainda está viva. Mistela incomestível saída da Bimby da indignação: quando se começa a exigir em 2017 declarações de perdão a um Presidente da República a propósito de tráfico negreiro terminado há 200 anos, aquilo que estamos a fazer não é a repor a memória histórica mas a cair na enésima variação da culpa do homem branco, uma tendência crescente que deve ser combatida com a mesma força que as suavizações do colonialismo português.

O historiador João Pedro Marques tem-se fartado de publicar artigos avisados sobre este tema, cuja leitura aconselho (por exemplo: “Pedir perdão pela escravatura? Três razões para não ir por aí”), mas desde que Marcelo se esqueceu de fazer o seu acto de contrição que a questão do esclavagismo e do racismo português tem vindo a subir de tom entre as elites culturais. Joana Gorjão Henriques, uma das subscritoras da carta aberta (e autora do livro Racismo em Português), assinou uma longa série de artigos no PÚBLICO significativamente intitulados “racismo à portuguesa”. E Mamadou Ba, outro dos subscritores, foi agora o promotor da patética manifestação contra a estátua do padre António Vieira, alvo de uma contra-manifestação de extrema-direita em defesa de uma obra com três índios tupi.

Infelizmente, e como é cada vez mais habitual, as reivindicações justas misturam-se com exigências absurdas, isolando defensores de boas causas na bolha cada vez mais delirante das políticas de identidade. É fácil perceber porquê: se qualquer pessoa com olhos na cara reconhece a existência de um problema de ascensão social entre os portugueses de origem africana; qualquer pessoa com os miolos no sítio e duas leituras do padre António Vieira reconhece, com a mesma facilidade, que Vieira é o pior português do século XVII para escolher como exemplo de racista e “esclavagista selectivo”. Os processos históricos deviam ter uma regra semelhante à lei dos direitos de autor: passados 70 anos sobre determinado acontecimento, ninguém tem mais direito a reivindicar o pagamento do que quer que seja. Nem assunções de culpa. Nem pedidos de perdão. Nem exigências de indemnização. Nada. É pura e simplesmente ridículo andar a pedir desculpa pelos actos do tetravô.

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