Querido Brasil

Constante em surpresas e contrastes, o Brasil tem vocação de grande país. Como tal, e apesar de todos os malefícios, há-de sempre salvar-se.

“O Brasil é imprevisível”, dizia a escritora Nélida Piñon, em acesa conversa de amigos, no Rio de Janeiro. Se “o Brasil não parou e não vai parar”, como o contestado Presidente Temer tinha afirmado nesse mesmo dia, é bem atual a reflexão de Nélida. A matança da reserva amazónica, decidida por recente decreto, era imprevisível. Mas já irá acontecer a venda de uma área superior a cinco milhões de hectares de floresta, na Amazónia. Usando o direito que lhe é concedido pelo sistema presidencialista, Temer atuou de surpresa, sem apelo. Não houve proposta, avaliação, votação nas câmaras do Congresso. Divulgada a notícia, a reação internacional foi imediata, e no país a revolta explodiu em todos os setores da sociedade. Temer simulou recuar, mas não houve clara alteração na substância do decreto.

Agora como nunca, os brasileiros andam zangados uns com os outros, a corrupção e a violência são feridas abertas na vida de cada dia. A crise económica, política, moral, institucional, é a maior de sempre e a depressão impera. Há um número sem fim de partidos sem ideologia, sem programa, sem debate interno. Consciência política não existe, o voto é obrigatório, o incumprimento tem punição. Os tempos agravaram-se desde aquela outra crise do final dos anos 80, quando Que país é esse, a música de Renato Russo com a banda de rock Legião Urbana, foi manifesto de mágoa. Cantada então em coro por todos os jovens brasileiros, a música denunciava a degradação das instituições, o país empobrecido. Contra o fim da esperança, cantava-se uma vontade forte de reagir contra a adversidade. O Brasil tinha sempre dívidas ao FMI, mas vários planos de consagrados economistas, não sendo ruinosos, eram considerados como possíveis. E o país foi cumpridor no pagamento devido. A dívida interna, dos Estados em relação à União, permanecia, crescente. Nos anos 80, eu assisti à palavra “Moratória” a instalar-se na linguagem comum. E admirei a espantosa agilidade do povo brasileiro no entendimento de mercado financeiro, de números e valores, de câmbios e cotações.

Fernando Henrique Cardoso, então ministro da Fazenda, concebeu o Plano Real. Criou uma nova moeda, enunciou prioridades e transformações. Ao fim de um ano, com a hiperinflação a baixar para níveis europeus e a taxa de juro a reduzir-se, alinhavam-se programas sociais, propunham-se tempos melhores. No seu primeiro mandato, o Presidente Lula manteve a mesma política económica, o governador do Banco Central seguiu a mesma linha, a estabilidade da moeda estava assegurada. Lula criou consensos com os sindicatos e com os movimentos dos mais desfavorecidos, dos migrantes, dos flagelados, dos sem-terra. Tirou 30 milhões de pessoas da pobreza. Agradou às elites económicas, que admiravam a sua autoridade, a sua habilidade política, a sua capacidade de comunicar. E que o apoiaram quando foi reeleito para o segundo mandato, por 56 milhões de votos. Só que, de acordo com o sistema brasileiro, o Presidente não tem poder legislativo e, para governar, precisa de conseguir votos no Congresso. Para tal, a compra de deputados corruptos tornou-se notícia, e a inventada palavra “Mensalão” cresceu.

Dilma Roussef foi vitima de um sistema politico incapaz de criar soluções de alternância parlamentar e económica. Dilma foi eleita num Brasil que tem uma economia independente do exterior, mas que é quase ingovernável. No atual sistema presidencialista não há mecanismos parlamentares, as reformas e as alterações de leis não se concretizam, os serviços públicos são antiquados, as hierarquias são nomeadas de acordo com os interesses partidários. A negociação prevalece, em vez da competência, para o exercício dos cargos. E, hoje, vamos assistindo ao detonar das instituições, dos poderes, do Congresso, da Justiça Federal. Não se acredita em pacto/concertação social possível. Continuando a sensação do imprevisível, o Brasil é hoje credor do FMI. O país não tem dívida externa, mas na União Federativa os Estados estão falidos e uma angustiante divida interna permanece. Atualmente, no próprio Estado do Rio de Janeiro, a dívida é colossal.

Para as eleições de 2018, Lula é até agora o único candidato anunciado. Formalmente condenado a nove anos e meio de prisão, o futuro mais ainda parece imprevisível. Porque para não ser cumprida a pena, existe o recurso interposto, que deverá ser julgado bem antes de outubro de 2018. Não sabemos se para tal os prazos serão firmados, se haverá atrasos, adiamentos, alterações. Tudo depende da pauta do recurso. E poderão ser cumpridos os prazos, se houver bom senso temperado de inteligência. No país onde o voto é obrigatório, enquanto Lula recebe o desejo e o apoio de milhões de eleitores, poderão ser os juízes a resolver quem será o próximo Presidente. Constante em surpresas e contrastes, o Brasil tem vocação de grande país. Como tal, e apesar de todos os malefícios, há-de sempre salvar-se.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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