Líder catalão dá uma última oportunidade de diálogo a Madrid

Cristina assegura que está feliz apesar das lágrimas: “No fim de contas, só queríamos votar”. Depois de apresentar os resultados do referendo, Puigdemont fez uma declaração de independência sem efeitos imediatos.

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A afirmação “Estado independente em forma de república” provocou o único momento de histeria no parlamento catalão QUIQUE GARCIA/EPA

Declarada a independência, suspensa a independência. Tendo em conta os apelos externos e internos dos últimos dias, assim como as movimentações dentro da coligação no poder na Catalunha, confirmou-se o cenário mais provável. No Passeio Lluís Companys, onde milhares de catalães se juntaram para estar o mais perto possível do parlamento e seguir a declaração de Carles Puigdemont, viveu-se uma espécie de anticlímax colectivo.

A prolongada espera contribuiu para fazer crescer a ansiedade – não só muitas pessoas chegaram bem antes da hora prevista para o início do plenário, as 18h, como a sessão começou com uma hora de atraso. O presidente da Generalitat estaria a receber uma oferta de última hora para uma mediação internacional entre Barcelona e Madrid. Também é provável que tenha sido obrigado a gerir as críticas da CUP (Candidatura de Unidade Popular), o partido independentista à esquerda do Juntos pelo Sim (no poder).

Cristina não consegue parar de chorar. Chorava quando ouviu o líder catalão proclamar a independência, já ele a suspendeu há uns bons cinco minutos e as lágrimas ainda lhe escorrem pelo rosto. Encostada ao marido, os dois de esteladas (bandeira independentista) atadas ao pescoço, ouviu Puigdemont em silêncio.

“É exactamente o que queria ouvir”, diz. “Queria a declaração de independência já mas sei que as coisas não se podem mudar de um dia para o outro”, afirma a catalã de 46 anos. “Estou feliz”, assegura. “Mas o que mais quero para a minha gente é para mim é que sejamos livres. Sobretudo que possamos votar e decidir o nosso futuro. No fim de contas, nós só queríamos votar.” E as lágrimas ainda a cair.

“Chegados a este momento histórico, apresentados os resultados do referendo diante do parlamento e dos nossos concidadãos, e como presidente da Generalitat, assumo o mandato do povo para que a Catalunha se converta num Estado independente em forma de república”, declarou o presidente do governo autonómico, arrancando da rua o maior dos aplausos da noite.

“Com a mesma solenidade, propomos ao parlamento que suspenda os efeitos da declaração de independência para que nas próximas semanas nos empenhemos num diálogo”, disse logo em seguida Puigdemont. Depois de afirmar que os independentistas não são “loucos, arrivistas, golpistas” mas “gente normal” sem “nada contra Espanha ou os espanhóis”, o presidente do governo insistiu, uma vez mais, na necessidade de se chegar a “uma solução acordada”.

Antes e depois

Ao contrário de Cristina, muita gente mordeu dedos ou tapou a cara de nervos à medida que Puigdemont ia falando. As palavras “Estado independente em forma de república” provocaram o único momento de histeria. Muitos, muitos abraços, gritos de “independência”, alguns saltos. Foi curto.

Alguns pareciam incrédulos quando Puigdemont anunciou a suspensão dos efeitos da independência. Braços para baixo, olhos perdidos. Afinal, fizeram o que os políticos lhes disseram, votaram num referendo onde venceu o “sim” apesar da repressão policial que, como lembrou Puigdemont, “levou mais de 800 pessoas ao hospital”. Mais: muitos passaram duas noites em escolas para proteger assembleias de voto. Outros esconderam urnas em casa. “Votaremos”, gritaram sob ameaça de pancada. “Votámos”, festejaram nesse domingo.

“Há um antes e um depois de 1 de Outubro, e conseguimos aquilo que nos tínhamos comprometido fazer no início da legislatura”, afirmou Puigdemont. O problema é que depois, apesar de ter provavelmente “evitados males maiores”, pelo menos no imediato, como lhe pedira a autarca de Barcelona, Ada Colau, não foi consequente.

O Governo de Mariano Rajoy repete todos os dias que não aceita uma negociação, que não faz sentido falar em mediação, que só se sentará com os líderes catalães quando estes “regressarem a legalidade”, o que implicaria esquecer as leis do Referendo e da Transitoriedade aprovadas pela maioria independentista no parlamento, a 6 e 7 de Setembro. Esquecer que houve referendo, apesar de suspenso pela Justiça e descrito como ilegal por Madrid. Esquecer que 2,2 milhões de pessoas que votaram, 90% para dizer “sim”.

Entre os independentistas, há quem espere há muitos anos por estas palavras, gente que foi votar em cadeira de rodas, jovens que querem tudo para já.

Koldeo, 62 anos, t-shirt vermelha com letras amarelas da campanha “Ara es l’hora” (Agora é o momento), lançada antes da consulta não vinculativa de 2014, está sentado em silêncio ao lado da mulher. “Queria uma declaração de independência sem condições”, diz. “Não é o que esperava” é a frase que repete em seguida, ainda a gerir as emoções de um dia que antecipava diferente. “Estou à espera há muitos anos…”

Puigdemont fez aquilo que muitos lhe pediram. Não capitulou nem se limitou a proclamar a independência. Nada garante que consiga seja o que for. Cá fora, em redor do Parque da Ciutadella onde fica o parlamento, encerrado desde a véspera pelos Mossos d’Esquadra, alguns tinham trazido enormes faixas brancas onde se lia “é preciso desobedecer”. Quem as trouxe deixou-as ficar.

Em Madrid, Rajoy reuniu-se com o seu ministro da Justiça, Rafael Catalá, para estudar a resposta ao que o Governo descreve como “chantagem inadmissível”.

“Há muito ódio”

Para já, o que Puigdemont conseguiu foi tornar mais difícil ao primeiro-ministro anunciar o “estado de emergência” ou a aplicação do artigo 155 da Constituição, que suspende as instituições da autonomia. Essas medidas levariam de novo o movimento independentistas à rua e na Catalunha ainda estão 12 mil membros da Polícia Nacional e da Guardia Civil enviados pelo Governo.

“Não queremos submissão, queremos ser livres e organizarmo-nos numa república aberta ao mundo”, disse no parlamento Anna Gabriel, porta-voz da CUP. “Hoje iniciamos uma nova etapa de luta porque hoje já não podemos suspender os efeitos de 1 de Outubro. Nós não podemos suspender os efeitos de nada. Diz-se que é por que se vai à mediação. Com quem? Com o Estado espanhol que permite a acção da extrema-direita nas ruas?”, perguntou, ecoando as dúvidas de muitos dos que assistiam ao plenário.

Ismael, arquitecto de 42 anos, filho de pai catalão e mãe sevilhana, compreende o que fez Puidgemont, essa “insistência em dizer que continuamos sentados à mesa, que não somos nós que nos vamos levantar, mas falta um interlocutor, uma ponte”. Este catalão também fala da extrema-direita que começou a sair à rua em Barcelona e que na segunda-feira atacou uma manifestação de esquerda em Valência. “Há muito ódio no Estado espanhol. Há uma Espanha profunda que não entende a nossa busca por mais democracia”, diz.

Para Ismael, como para o resto dos catalães que acreditam neste processo, “isto não se vai aguentar muito mais, os líderes da Catalunha propuseram de tudo a Madrid nos últimos anos e nunca tiveram resposta; somos um povo de paz e esta é uma questão de democracia”. Ismael espera que “este voto de confiança” dado por Puigdemont “ao Estado mas também, e principalmente, à comunidade internacional” obtenha uma resposta. “Mas creio que não podemos esperar muito tempo”.

Oportunidade perdida?

O líder catalão voltou a insistir no papel da UE e lembrou os grupos de cidadãos, como o de Prémios Nobel da Paz, que contactaram a Generalitat e apelaram a uma negociação. No fim da sessão, e apesar das críticas da CUP, os seus deputados assinaram a declaração de Puigdemont, assim como todos os membros da coligação Juntos pelo Sim, da Esquerda Republicana da Catalunha ao Partido Democrata Catalão (nacionalistas de direita).

“Pensávamos que hoje se iria proclamar solenemente a república catalã e talvez tenhamos perdido uma oportunidade”, disse ainda Gabriel. Quem ainda aguentava a noite no Passeio Lluís Companys aplaudiu muito a intervenção da deputada – como ela, também estas pessoas saíram de casa à espera de mais.

“Somos independentes à espera”, brinca Nuria, jovem de 23 anos, quando o gerente de um restaurante turco sai à rua e faz conversa, a tentar perceber exactamente o que aconteceu. “Bem, ouvir o que ouvi, dito assim, no parlamento, tem impacto. Mas espero que não deitemos tudo a perder”.

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