Na Maia, a missão de preservar o riso é para ser levada a sério

Até domingo decorre no Fórum da Maia a 22ª edição do Festival Internacional de Teatro Cómico com 31 espectáculos de 24 companhias nacionais e internacionais.

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Paulo Pimenta
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José Torres sobe sozinho para o palco do anfiteatro ao ar livre encostado ao edifício do Fórum da Maia para enfrentar uma plateia de 600 pessoas. Está em personagem. Naquela altura o espanhol nascido em Cadiz, mas a residir em Portugal, é o palhaço Enano. Aos poucos vai despindo os trajes de palhaço para se transformar noutra coisa qualquer. Pede a ajuda do público para levar a cabo com êxito essa transformação. Conta com a cooperação de uma criança que é convidada a entrar no cenário para o auxiliar durante todo o processo de caracterização. Da plateia ouvem-se palmas de incentivo e risos arrancados pela performance do artista. Em poucos minutos o clown passa a Cupido e dá início ao plano que o levou até ali: espalhar o amor. Começa o espectáculo de improviso, Amore, parte da programação do último fim-de-semana da 22ª edição do Festival Internacional de Teatro Cómico da Maia (FITCM), que arrancou na sexta-feira passada e decorre até domingo no Fórum da Maia.

São 31 espectáculos de teatro cómico, 18 deles gratuitos, que durante dez dias de festival se dividem entre o auditório do Fórum e o anfiteatro exterior, com a participação de 24 companhias de teatro diferentes. Representados no evento estão países como Espanha, Itália, Irlanda, Argentina, Suíça, Inglaterra, Nova Zelândia e Portugal, o país mais representado, com nove grupos. A organização, a cargo da Teatro Art’Imagem, que produz e programa o evento da responsabilidade da Câmara Municipal da Maia, espera que o público volte a aparecer em massa como aconteceu noutras edições. Todos os anos passam pelo evento, que custa à autarquia 120 mil euros, cerca de 10 mil pessoas.

Espectador habitual é Pedro Ramos, residente na Maia, que este ano também não quis faltar. Dentro da programação, tanto escolhe os espectáculos do auditório, com bilhetes a variar entre os 3 e os 5 euros, como os gratuitos ao ar livre. É pai de Inês, que minutos antes tinha estado em palco para ajudar Enano a transformar-se em Cupido. Passou pelo anfiteatro naquela tarde para assistir a um programa mais orientado para as famílias. “Seria à partida uma peça mais direccionada para os mais pequenos, mas que apela também a um público mais adulto”, afirma. Curiosamente, a filha não nutre grande simpatia por palhaços. Ainda estava “em choque” depois de ter subido ao palco. Cá em baixo ninguém deu por isso. Esteve à altura da responsabilidade e não mostrou parte fraca junto de Enano.

Inês não foi a única a participar activamente no espectáculo de improviso. Na primeira fila está um grupo de crianças debruçado no palco, mas os risos que se ouvem com mais convicção são os do público mais adulto. Ninguém está livre de ser o alvo do artista. Saiu a fava a Dinis Alves, com 65 anos, também residente na Maia. De pé, atrás das bancadas do anfiteatro que não chegavam para toda a gente, foi avistado pelo espanhol. Não havia como fugir. Foi Enano que o foi buscar pelo braço. O Cupido precisava de encontrar um par para o espectador. Foi procurando no público alguém que se pudesse encaixar no perfil. Achada a candidata a cara metade, cria-se uma narrativa na hora para aproximar o casal em potência.

Mas Dinis Alves já está comprometido. Não é por isso que não entra na brincadeira e leva a sério a cena montada em palco. A esposa do “actor” à força, Maria de Fátima, também presente na plateia, não levou a mal. São estes momentos de descontracção e de riso que diz fazerem-na regressar todos os anos ao FITCM. O marido concorda: “Enquanto aqui estamos esquecemos os problemas”.

Todos os anos a organização escolhe um slogan diferente para o festival. O deste ano vai ao encontro da ideia expressada por este casal de espectadores: Tira-me tudo menos o teu riso — frase de um poema do chileno e Nobel da Literatura, Pablo Neruda. É mais um slogan que, de acordo com o director artístico do festival e do Teatro Art’Imagem, José Leitão, se adequa “ao arco do tempo” e que não esconde a intenção política associada à frase.

“Tiraram-nos tanta coisa nos últimos anos e a recuperação ainda é mínima”, afirma, acrescentando que é precisamente no riso ou na ausência dele que a liberdade começa e acaba. Sublinha que “a capacidade de se conseguir rir de si mesmo” é exclusiva do ser humano, considerando a ironia, a sátira e o sarcasmo uma arma: “O cómico não é só para fazer rir. É essencialmente para rir, mas também pode ser muito trágico”.

É esta a visão que José Leitão transporta para a programação do festival que caracteriza como tendo a palavra e o texto em primeiro plano e que abarca as várias disciplinas do teatro. Não menospreza outras forma de abordar a comédia, mas diz interessar-lhe mais seguir uma direcção assente no “riso inteligente, que questiona, que reflecte e que acaba num esgar de interrogação”. Citando Jorge de Sena conclui: “Interessa-me o riso acima do baixo ventre”.      

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