E quando “eles” não estão?

Ana e Inês parecem precisar de crescer muito rapidamente. Não há ninguém que as ampare, ninguém que as proteja, ninguém que as faça sentir que podem brincar com bonecas sem preocupações

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Sam Headland/Unsplash

A Ana tem quatro anos, ainda mal sabe falar. Quando entra no gabinete sabe bem o que quer fazer, vai directa à caixa dos brinquedos e tenta, sozinha, pegar-lhe, muitas vezes sem sucesso, uma vez que a caixa é quase maior do que ela. Veste-se de forma a parecer sempre uma princesa, a sua cor preferida é o rosa e gosta de usar bâton para parecer uma senhora. A Inês tem dez anos, já sabe falar, mas pouco fala. Senta-se sempre num cantinho, de braços cruzados demonstrando algum desconforto e, de repente, o sofá parece enorme só para ela. Veste-se de forma muito pouco cuidada, não se penteia e usa óculos.

O que têm estas duas meninas em comum? Vejamos.

Os pais da Ana separaram-se há dois anos, a mãe era vítima de violência doméstica e desde então este processo está em tribunal. O pai da Ana é toxicodependente e tem vindo a usá-la para chegar até à mãe. De 15 em 15 dias, a Ana passa o fim-de-semana com ele, num ambiente que a mãe desconhece e que a Ana parece não gostar.

A mãe da Inês faleceu há dois anos devido a um cancro e o pai, na altura em que estes se separaram, nunca mais quis saber da Inês. Neste momento, a Inês vive com a avó materna na casa onde sempre viveu com a mãe. A avó é uma pessoa bastante angustiada porque ela própria viu a família quase toda morrer. Tanto a filha (mãe da Inês), como o marido (avô da Inês), como a outra filha (tia da Inês) e, finalmente, a sua neta (irmã da Inês) morreram com cancro. A Inês também tem medo de perder a avó, afinal todos desaparecem.

A Ana faz sempre as mesmas brincadeiras com famílias, ou de pessoas, ou de animais. Só que na família o bebé é sempre esquecido, é sempre maltratado, tem sempre que esperar e tem que se desenrascar sozinho, não podendo contar nem com a mãe nem com o pai. No entanto, há sempre uma figura que vem salvar este bebé, este bebé ainda pode “sobreviver”. Nos dias antes de ir de fim-de-semana com o pai, a Ana mantém estas brincadeiras, mas de uma forma mais intensa. Fica irritada, agressiva, zangada, querendo matar a mãe e o pai com a pistola, para além das meninas malcomportadas. Parece que a Ana tem pavor de dormir em casa do pai, chamando pela mãe, mas esta, com medo deste pai e do que este pode fazer, não consegue responder ao pedido de ajuda da filha deixando-a dormir num sitio onde não se sente segura. Quando a Ana volta para casa vem profundamente triste e carente de afecto, não conseguindo adormecer primeiro do que a mãe com medo que esta despareça mal feche os olhos. E é naquele espaço, comigo, que a Ana despeja as suas zangas, as suas angústias e os seus medos.

A Inês quase nunca quer falar, mas é sempre a primeira a chegar. Quando falo na mãe, começa a emocionar-se, as lágrimas vão caindo pelo rosto, quando ela assim o permite. Até então nunca tinha sido possível falar sobre a mãe e, principalmente, poder sentir que ela morreu e que já não está lá. Nunca conseguiu ficar triste porque tinha que ser forte para “aguentar” esta avó angustiada. Naquele espaço, a Inês não precisa de ser forte e pode sentir-se triste mesmo quando não quer falar. Ali pode sentir saudades da mãe, dos seus abraços, dos seus beijos e de ser amada. De ser criança.

E agora, se calhar, fica mais fácil responder à questão colocada inicialmente: mas, afinal, o que têm estas duas meninas em comum? Tanto a Inês como a Ana tiveram um momento de crise na sua vida/família que as modificou para sempre. E, apesar de não estarem sozinhas, de terem família e gente à volta, parecem sentir-se bastante desprotegidas, sozinhas no seu sofrimento, sufocadas e sem um espaço onde possam ser elas próprias, onde alguém aguente as suas zangas, as suas tristezas e angústias. Parecem precisar de crescer muito rapidamente, pois não há ninguém que as ampare, ninguém que as proteja, ninguém que as faça sentir que podem brincar com as bonecas sem preocupações ou que podem estudar sem medo de ficarem sozinhas no mundo. No entanto, este trabalho não será eficaz sem a colaboração dos pais ou dos familiares destas crianças. E é isso, também, que tentamos fazer, de modo a protegê-las e a proporcionar-lhes um ambiente mais seguro.

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