A independência da Catalunha numa era de interdependências

Hoje a questão que os catalães têm de colocar é a de assumir todas as consequências económicas, sociais e políticas que resultarão de uma secessão de Espanha.

1. Entre nós, portugueses, é natural existir simpatia pela Catalunha. A restauração da independência de Portugal, a 1 de Dezembro de 1640, é uma das datas mais importantes do nosso passado colectivo. Liga-nos à história da Catalunha. A revolta dos ceifeiros dos anos 1640 — ocorrida durante a guerra dos Trinta Anos (1618-1648) —, facilitou a recuperação da independência portuguesa, da qual nos devemos orgulhar. Obrigou os exércitos espanhóis, sob o comando do conde-duque de Olivares, a deslocaram-se para a Catalunha. Mostra o que Portugal seria se não tivesse triunfado a rebelião contra a monarquia espanhola. Mas ambição de independência da Catalunha não acabou em 1640. Continuou viva ao longo dos séculos seguintes. Emergiu, novamente, durante a guerra da sucessão de Espanha (1701-1714). Aí foi derrotada e perdeu as suas instituições próprias, ocorrendo um processo de centralização do Estado espanhol no governo de Madrid. A primeira república espanhola (1873-1874) e os trágicos anos 1930, que levaram à guerra civil (1936-1939) foram novos momentos de irrupção do sentimento nacionalista. Em 1934, Lluís Companys, o Presidente da Generalitat, proclamou um Estado catalão no âmbito de uma federação republicana espanhola, num primeiro passo para a independência. A ambição independentista foi esmagada militarmente e a Catalunha perdeu o seu estatuto de autonomia.

2. Neste ano de 2017, a questão da independência da Catalunha voltou a reemergir com grande intensidade. É grande a tentação para a discutirmos de forma emotiva, como se estivéssemos em 1640, em 1714, em 1934, ou ainda na ditadura da Espanha franquista. Não há dúvidas que em todas essas épocas históricas só pela rebelião e pela força das armas era possível um povo formar um Estado independente e ter liberdade. Também não há quaisquer dúvidas que os derrotados foram sujeitos a uma opressão e repressão — demasiado evidente durante toda a Espanha franquista, até 1975. Mas hoje não é essa a realidade da Espanha que, tal como Portugal, está na União Europeia desde 1986. Nela, os princípios do Estado de direito democrático e de protecção das minorias são uma obrigação permanente e efectiva. Ao mesmo tempo, a Catalunha aprovou esmagadoramente a Constituição de 1978, num referendo livre democrático, tal como a restante Espanha. Mas não é só isso que faz a diferença do presente face ao passado. Neste início de século XXI, vivemos num mundo radicalmente diferente de outras épocas históricas, devido à globalização, à integração europeia e ao elevadíssimo grau de interdependência económica que daí decorre. Tudo isto condiciona o poder político e económico do Estado, ou seja, a soberania tal como esta é entendida tradicionalmente. No passado europeu lutar pela independência — entendida, fundamentalmente, como exclusão de poderes estrangeiros da política e economia nacional —, significava, acima de tudo, um povo estar disposto a amplos sacrifícios de vidas humanas na guerra. Hoje a questão coloca-se noutros termos.

3. A história de um povo e a sua identidade são valores inquestionáveis e que devem ser preservados. Um povo sem história é pobre, perde laços que o ligam, perde a memória que o perpetua no tempo. Mas o passado histórico, se mal usado e manipulado, pode tornar o futuro de um povo refém deste. É esse o problema dos nacionalismos. Embora contenham facetas cívicas e comunitárias positivas — que as elites globalizadas menosprezam —, a partir de um certo grau de intensidade, difícil de precisar, podem tornar-se um entrave ao presente e ao futuro. George Orwell foi um admirador da Catalunha. Combateu na guerra civil espanhola de 1936-1939 ao lado dos republicanos. Em “Notas sobre o Nacionalismo”, fez uma análise das suas características publicada na Polemic (1945), uma revista britânica dedicada a assuntos de Filosofia, Psicologia e Estética. Contém reflexões perspicazes sobre o nacionalismo que vale a pena recordar aqui. Uma das características que Orwell lhe apontava era a indiferença à realidade. Notou que todos "os nacionalistas têm o poder de não ver semelhanças entre conjuntos de factos similares […] As acções são consideradas boas ou más, não pelos seus próprios méritos, mas de acordo com quem as faz […]. Todo o nacionalista é perseguido pela crença de que o passado pode ser alterado. Gasta parte de seu tempo num mundo de fantasia onde as coisas acontecem como deveriam […] A indiferença à verdade objectiva é encorajada pelo fechar de uma parte do mundo a partir de outra, o que torna mais difícil descobrir o que realmente está a acontecer.” Reflexões que mantêm uma impressionante actualidade no mundo de hoje e na questão da Catalunha.

4. Carles Puigdemont, o Presidente da Generalitat, Oriol Junqueras, o seu aliado na coligação Juntos pelo Sim e Vice-Presidente da Generalitat, bem como os grupos da sociedade civil que mais impulsionam a independência — a Assembleia Nacional da Catalunha (ANC) e o Òmnium Cultural —, parecem sofrer também da "indiferença à realidade", característica que Orwell encontrava na mente de todos os nacionalistas. Um caso interessante é o do já referido Oriol Junqueras. O seu partido, a Esquerda Republicana da Catalunha, é o partido histórico do independentismo, com raiz nos anos 1930. O peso do passado parece cair sobre o seu líder. (É doutor em História do Pensamento Económico, com uma tese sobre "Economia e Pensamento Económico na Catalunha da Alta Idade Moderna, 1520-1630"). Talvez pela sua própria formação e visão do mundo, Oriol Junqueras tenha subestimado o movimente de saída das empresas da Catalunha que provocaria uma declaração de independência unilateral. Após o referendo de 1 de Outubro — e a anunciada declaração de independência —, continuava a afirmar que não havia risco de as empresas saírem da Catalunha. Ver o mundo por lentes do passado, sem o temperar com uma correcta leitura das circunstâncias presente, pode levar a graves erros políticos. O problema dos que lutaram pela preservação da autonomia ou independência em 1640, 1714 ou até 1934, não foi, certamente, perder o acesso a programas de financiamento e liquidez do Banco Central Europeu (BCE), ou a deslocalização das empresas multinacionais e instituições financeiras para fora do território. Nessas épocas, mesmo em 1934, a questão da interdependência económica, financeira e social não tinha qualquer impacto comparável ao que tem hoje.

5. Num mundo actual globalizado, impregnado de uma ideologia neoliberal que glorifica o homo economicus, a Catalunha é, goste-se ou não, um mercado que compete com outros. Um mercado interessante, pelo seu grau de desenvolvimento, bem-estar e localização próxima de França, mas pequeno: 7,5 milhões de consumidores. O seu sucesso — como de qualquer economia pequena, aberta e dinâmica —, está muito ligado ao acesso ao mercado espanhol, ao mercado da União Europeia e ao mercado global. Uma declaração de independência que quebre ou dificulte significativamente o acesso a ambos provocará, como já é visível, uma saída em massa de empresas. Foi o que aconteceu na Catalunha após 1 de Outubro onde surgiu um movimento de retirada de sedes sociais para outros pontos de Espanha. A saída já foi anunciada pelo CaixaBank e o Sabadell no sector financeiro, a Gas Natural, a Service Point de serviços de impressão digital, a têxtil Dogi, a biotecnológica Oryzon, a Sociedade Geral das Águas de Barcelona (Agbar) entre outras. Podem ainda existir efeitos de bem maior amplitude se, por exemplo, levar à saída de empresas como a SEAT, integrada no grupo alemão Volkswagen. Entre os 7,5 milhões de consumidores da Catalunha e os 38 ou 39 milhões do resto da Espanha, poucas empresas serão nacionalistas ou patrióticas. Mas tudo isto é algo extremamente sério que pode afectar drasticamente o bem-estar de uma população, em termos de rendimento, de emprego e vida futura.

6. No turbulento referendo do passado do 1 de Outubro a questão sobre a qual os eleitores da Catalunha tiveram de se pronunciar foi: “Quer que a Catalunha seja um Estado independente sob a forma de república”? Segundo os dados publicados pela Generalitat, votaram cerca de 2,2 milhões pessoas (43 % dos eleitores inscritos), com mais de 90% dos votos favoráveis ao “sim”. Pelas próprias circunstâncias como decorreu — fora do quadro de legalidade do Estado espanhol e com repressão policial —, é impossível validar os resultados. Ao mesmo tempo, admitindo a veracidade dos dados, verifica-se que houve uma participação inferior a 50% do corpo eleitoral da Catalunha, o que, em qualquer referendo desta importância, retiraria valor aos resultados. Mas há um aspecto crucial que tem sido negligenciado no debate sobre o direito da Catalunha decidir democraticamente o seu futuro. Para além do problema constitucional, terá de ser colocada uma outra questão de importância decisiva: "quer proclamar uma República da Catalunha independente, mesmo que não possa ser membro da União Europeia?" Numa consulta eleitoral séria e democrática impõe-se sufragar um projecto — que terá de ser concreto e exequível —, de um futuro Estado independente. Não se pode reduzir a saber se a população concorda com um ideal abstracto de independência, sob uma vaga fórmula republicana. Caso contrário, a decisão, na prática, fica nas mãos de partidos que não obtiveram a maioria dos votos do eleitorado. Só assim os eleitores tomarão consciência do que está em causa e poderão assumir a plena responsabilidade da sua escolha. Mas não foi o que aconteceu a 1 de Outubro.

7. Se há alguma coisa que parece evidente, num assunto tão complexo como este, é que uma República da Catalunha unilateralmente independente não será, pelo menos nos anos vindouros do futuro discernível, um Estado-membro da União Europeia. Em termos político-jurídicos, não existe, a priori, qualquer solução automática que garanta a sua permanência na União Europeia, nem na Zona Euro. Isto é válido em qualquer cenário de uma independência declarada unilateralmente, mesmo que seguida de uma instauração de facto de um novo poder estadual no território. (Ver “É possível uma Catalunha independente na União Europeia?” in Público, 12/09/2017). Só a Espanha, ainda que reconfigurada territorialmente, continuará a ser membro da União. A alternativa para a Catalunha é passar por um novo processo de adesão, onde é necessário, entre outros requisitos, um consenso de todos os Estados-membros — o qual abrange a própria Espanha — que, no limite, poderá sempre vetar tal adesão. Na realidade, o que está em causa para a Catalunha não é apenas obter uma independência de Espanha (desejada por uma parte da população), mas também uma saída (ainda que indesejada) da União Europeia. O independentismo nunca deixou claro que será essa a consequência.

8. Sejamos claros: não basta afirmar solenemente, como fez o Parlamento da Catalunha na “lei da desconexão”, que uma futura república será membro da União Europeia e continuará a aplicar a sua legislação. Isso não depende, em nenhuma circunstância, apenas a vontade da Catalunha. Assim, a questão da independência levanta, como já fizemos notar, não uma, mas duas questões particularmente complexas e com enormes repercussões no futuro: (i) a questão da formação de um novo Estado soberano com características que, em parte, podem ser comparadas às da formação de outros como, por exemplo, o Kosovo, nomeadamente em matéria de reconhecimento internacional; (ii) uma questão de saída da União Europeia similar, em vários aspectos, ao da saída do Reino Unido da União Europeia (o Brexit). Quanto a este último problema, a situação da Catalunha é ainda mais complicada pois, ao contrário dos britânicos que sempre mantiveram a sua moeda própria — a libra esterlina —, a Catalunha usa o Euro. Daí que um resultado de uma independência unilateral, se esta avançar, será desencadear problemas económicos e financeiros que vão fazer lembrar os da Grécia no auge da crise da sua dívida e da Zona Euro, em 2015. Mas nem aí, numa situação extraordinariamente crítica, o governo do Syriza de Alexis Tsipras quis arriscar abandonar a Zona Euro em nome de uma recuperação da soberania monetária.

9. No passado os catalães — tal como qualquer povo que ambicionava ser independente — tinham de fazer uma pergunta crucial a si próprios: estavam dispostos a lutar, com todos os meios, arriscando a própria sua vida, para conquistar e conservar a independência? Hoje a questão que têm de colocar é outra. Não é a de sacrificar fisicamente as suas vidas num confronto militar, mas a de assumir todas as consequências económicas, sociais e políticas que resultarão de uma secessão de Espanha. Estas implicarão ter de estar preparado para um não reconhecimento internacional generalizado e abandonar a União Europeia. Não é realista pensar que, nas actuais circunstâncias, é possível negociar uma secessão amigável com o Estado espanhol, nem que este vai facilitar a sua reentrada na União Europeia. A Espanha vai defender a sua soberania e integridade territorial com todos os meios legais e políticos — incluindo, possivelmente, o recurso ao artigo 155 da Constituição para suspender a autonomia catalã. Está a Catalunha preparada para isso? São os catalães que têm de dar a resposta a si próprios. Uma independência unilateral implicará que as gerações actuais estejam dispostas a sacrificar o seu bem-estar durante largos anos, ou décadas, num processo de resultado final incerto. No espectro político, só a esquerda radical da Candidatura de Unidade Popular (CUP) parece, de forma clara, disposta a isso. (O Partido Democrático Europeu Catalão e a Esquerda Republicana da Catalunha pretendem ficar na União Europeia). O programa da CUP é soberanista, anti-capitalista e anti-União Europeia. Uma República da Catalunha fora da União Europeia e desligada da economia globalizada enquadra-se no seu projecto político. Mas no actual parlamento a CUP representa apenas 8,2 % dos eleitores. Resta saber o que a grande maioria da Catalunha quer para o seu futuro num mundo de interdependências.

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