Catalães pró-Espanha saem das “trincheiras” e ocupam as ruas

Centenas de milhares pediram “prisão” para Puigdemont, gritaram “Catalunha é Espanha” e “somos espanhóis, não somos fachos”. Para Vargas Llosa, o nacionalismo faria da “Catalunha um país do terceiro mundo”.

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JOSE COELHO/EPA

Alguns nunca se tinham manifestado, outros saem à rua a cada 12 de Outubro, dia da Hispanidade ou Dia Nacional de Espanha, que comemora a chegada de Colombo à América. Muitos vieram de comboio ou de autocarro de outras zonas de Espanha, sozinhos ou nos grupos organizados pela associação que convocou a marcha, a Sociedade Civil Catalã. Muitos mais saíram de casa e dirigiram-se a pé ou de metro para o ponto de partida, a praça Urquinaona do centro de Barcelona.

A organização diz que foram mais de um milhão, a Guarda Urbana fala em 350 mil, outras polícias falam em 400 mil. Era muita, muita gente, a lembrar as manifestações independentistas do 11 de Setembro, a Diada que assinala a integração definitiva da Catalunha em Espanha.

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Momento da manifestação pró-Espanha, em Barcelona. São visíveis, na primeira fila, Mario Vargas Llosa, o presidente do PP catalão, Xavier Garcia Albiol, o líder do Ciudadanos, Albert Rivera, entre outros EPA/FELIPE TRUEBA

Uma semana depois do referendo sobre a autodeterminação convocado pelos líderes catalães e considerado ilegal por Madrid e pela Justiça, uma semana depois de mais de dois milhões de catalães terem enfrentado a ameaça das operações policiais (houve mais de 800 feridos) para colocar um boletim numa urna, saiu à rua a multidão que não votou. “Aqui está o povo catalão”, disseram. “Viva Espanha e viva Catalunha”, “Eu sou espanhol, espanhol”, gritaram.

Vieram famílias, grupos de amigos, casais de muita idade, veteranos militares de boina verde, jovens e menos jovens vestidos como se fossem assistir a um jogo da selecção, óculos gigantes e chapéus vermelhos e amarelos. “Estou farta de estar em casa”, explicava Mireia, a bandeira a protegê-la do sol. “Deixei de conseguir falar com os meus amigos independentistas”, diz a catalã de 53 anos, que ainda espera encontrar uns amigos que vieram de Valência.

Visto do céu seria um mar de bandeiras espanholas pontuado pelo azul das bandeiras da União Europeia. A multidão era tanta que ultrapassou em mais de uma hora o grupo que deveria encabeçar a marcha e onde seguiam os organizadores e os políticos que se quiseram juntar, incluindo o líder do grupo parlamentar do PP catalão, Xavier García Albiol, a presidente da Comunidade de Madrid, Cristina Cifuentes, ou o líder do Cidadãos (partido que nasceu há dez anos na Catalunha para combater o independentismo), Albert Rivera, saudado a gritos de “presidente, presidente”.

Ao lado, marchavam os oradores anunciados, como o ex-ministro socialista e antigo presidente do Parlamento Europeu Josep Borrell, e o Nobel da Literatura peruano, há mais de 20 anos com nacionalidade espanhola, Mario Vargas Llosa.

“Bom-dia, cidadãos da Catalunha. Ja som aqui! [já aqui estamos]”, começou por dizer o vice-presidente da Sociedade Civil Catalã, Alex Ramos, evocando a frase “Cidadãos da Catalunha, ja sóc aqui”. Pronunciada na varanda do Palácio da Generalitat por Josep Tarradelas, líder catalão no exílio entre 1954 e 1977, para muitos catalães foram estas as palavras que marcaram o fim definitivo da ditadura e a transição para a democracia. E nenhum orador deixou de falar em democracia, por oposição “ao golpe independentista”.

Seny e sensatez

Nem tudo foi “seny”, aquela palavra catalã que se traduz como sensatez por falta de melhor opção, mas na verdade significa uma sabedoria antiga, mistura de bom-senso com bom-humor e capacidade de reagir a qualquer situação de forma equilibrada.

Domingo, marchou-se sob o lema “Basta! Recuperemos el seny”. Como exigido pela organização, só se agitaram bandeiras constitucionais. Mas houve muitos gritos de “Puigdemont, para a prisão”, “Guardem as carteiras que vem aí Junqueras”, cartazes a pedir a ilegalização dos Mossos d’Esquadra, a polícia catalã, ou gritos de “somos espanhóis, não somos fachos”. Carles Puigdemont é o presidente do governo catalão; Oriol Junqueras o seu vice.

Borrell chegou a interromper a sua intervenção para pedir à multidão que não gritasse algumas destas palavras de ordem. “À prisão só vai quem um juiz decidir”, disse. “Temos de pedir respeito para nós e para eles. Ter muita calma nos próximos dias.”

Os próximos dias são aqueles em que o líder da Generalitat pode fazer algum tipo de declaração de independência. Os resultados do referendo já foram entregues à assembleia e na terça-feira Puigdemont falará aos deputados.

Capital cultural

Vargas Llosa descreveu o nacionalismo como “a pior das crises e paixões”, a que “mais encheu a história do mundo e de Espanha de cadáveres”. Uma “paixão” que já “há muito tempo causa problemas” na Catalunha. “Por isso estão aqui, para pará-la. Para isso saíram milhares e milhares de catalães de casa nesta manhã de sol outonal de Barcelona. São catalães, são democratas que não julgam os que pensam diferente como traidores”, afirmou.

O Nobel da Literatura (apresentado, por engano, como Nobel da Paz), recordou a Catalunha do fim da ditadura, a Barcelona que conheceu nos últimos anos do franquismo, “quando a cidade aproveitou como nenhuma outra os resquícios de liberdade para se abrir ao mundo, trazendo os livros e os ares da Europa e da democracia”. Na altura, recordou, “era preciso estar aqui para se estar na vanguarda das artes e da literatura”. O independentismo, defende, arrastaria a “Catalunha para um país do terceiro mundo”.

No dia em que os políticos no activo subiram ao palco mas não tocaram no microfone, coube ao presidente da Sociedade Civil Catalã, Mariano Gomá, agradecer emocionado à multidão. “Nunca, nunca pensámos que viria tanta gente. Sabemos que nunca mais estaremos nas trincheiras, agora estaremos na rua”, afirmou, antes de vivas a Espanha, à Catalunha e ao rei.

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Vargas Llosa descreveu o nacionalismo como “a pior das crises e paixões” REUTERS/Eric Gaillard

Quase no final, ouviu-se o Hino à Alegria (o mesmo que encerrou o último comício independentista antes da consulta). Não era ainda o fim. “Quando um hino incomoda um país é porque esse país tem problemas. Que soe o hino de Espanha”, pediu Gomá. Depois, despediu-se até 12 de Outubro. Antes de descer do palco disse ainda aos microfones: “Nunca mais estaremos sozinhos”.

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