“Perdemos a capacidade de sonhar utopias”

“Porque nunca perguntamos porque é que a Liga das Nações durou pouco mais de 20 anos e a ONU já dura há pelo menos o triplo disso?”, diz o historiador Mark Mazower, especialista na história do internacionalismo. “Deve estar a fazer alguma coisa boa: o primeiro desafio das instituições é sobreviver”

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Mark Mazower é um historiador de peso que gosta de escrever pequenos artigos de opinião sobre a actualidade nos jornais. Estudou a fundo o século XX e, com isso, ajuda-nos a olhar para o nosso tempo. Britânico com formação em Oxford, é director do Centro de História Internacional do Departamento de História da Universidade de Columbia, em Nova Iorque. O seu último livro traduzido para português, Governar o Mundo – História de uma ideia, editado pelas Edições 70, atravessa os 150 anos da história do internacionalismo, desde o momento em que nasceu como uma ideia radical defendida por um pequeno grupo de sonhadores até à fundação da ONU, o mais longe que as nações do mundo — com poder e interesses muito desiguais — conseguiram alcançar.

Contrariando o presentismo (que nos faz olhar para o passado com os olhos do presente), a viagem de Mazower põe em causa algumas teses correntes. Uma das mais enraizadas é a de que a Liga das Nações, que existiu entre 1920 e 1946, foi um rotundo fracasso porque não conseguiu evitar a II Guerra Mundial. “Não é nos fracassos da Liga que nos devemos concentrar, mas sim na sua influência duradoura”, escreve Mazower (pág. 179). A base de muitas das instituições internacionais que ainda hoje existem — como o modelo de cooperação internacional para a saúde, para as operações de resposta aos desastres, a ciência e a medicina — foi criada pela Liga. Um exemplo: não é por acaso que o Programa Alimentar Mundial, que dá assistência a 80 milhões de pessoas por ano, tem sede em Roma (pág. 132).

Num momento em que o internacionalismo é questionado pela nova Administração dos EUA, decisivos para a construção da ONU, Mark Mazower vem sublinhar que “o simples facto de ter sido possível criar a ONU é quase um milagre”. As suas fragilidades são o preço a pagar.

Mergulhar em Governar o Mundo é descobrir a história dos grandes utopistas, homens como o conde francês Saint-Simon (pioneiro da ideia da organização científica da sociedade e que em 1814 propôs uma federação de toda a Europa) ou William Randal Cremer (o pai da arbitragem internacional, filho de um cocheiro, que foi Nobel da Paz em 1903), ou Paul Otlet, o optimista belga que queria fazer um Livro Universal (isso faz-lhe lembrar alguma coisa?). E é também compreender como se debate a urgência em reformar a ONU desde ainda antes de a ONU ter nascido. O que diria Mazower sobre isso a António Guterres, se se encontrasse com o novo secretário-geral? “Que continue a permitir que a ONU desempenhe o seu papel vital, que é um papel simbólico — talvez o seu atributo mais importante.” E que “é sempre difícil lidar com as utopias”.

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O pecado original está nas nossas cabeças: ou seja, pensar que podíamos criar uma instituição perfeita que conseguisse trazer paz ao mundo e resolver todos os nossos problemas internacionais

Em 1944, o historiador e diplomata britânico Charles Webster já escrevia no seu diário que a ONU era “uma aliança das grandes potências” disfarçada de “organização internacional”. Antes da sua investigação para este livro, esperava que isso fosse tão literalmente verdadeiro?
Não gostamos de pensar que vivemos no século XIX nem que as grandes potências na velha acepção existam hoje e mantenham influência. Mas os homens que criaram as Nações Unidas nasceram no século XIX e eram um produto desse tempo. Não é surpreendente que quando eles pensaram sobre o que tinha corrido mal com a Liga das Nações, a sua resposta foi que a Liga era demasiado moderna e demasiado democrática. Claro que tinham razão ao pensar que sem os EUA e a URSS como Estados-membros a ONU seria irrelevante desde o primeiro dia. Esta foi uma concessão necessária.

O cepticismo em relação à ONU emergiu logo no início, na conferência fundadora de São Francisco, vindo de pequenos países, mas também de grandes, como o Canadá e a Austrália. Como é que as grandes potências responderam a isso e enfrentaram a crítica?
Uma das coisas interessantes a perceber é que a ONU sempre foi criticada e debatida, desde que nasceu e até antes de ter nascido. E por isso evolui como resultado de uma série de compromissos. Isso criou uma capacidade para a surpresa institucional. Logo em 1946, houve surpresa em relação ao papel que a Assembleia Geral da ONU estava a começar a desempenhar e isso foi ainda antes da grande expansão do número de membros da ONU, que aconteceu nos anos 1950 e 1960.

Impressiona ler no seu livro que, logo em 1948, já se falava da necessidade de “reestruturar um Secretariado problemático”, reduzir “os bloqueios burocráticos”, mudar “o manicómio” e reformar a máquina “pré-histórica” e “pesada”. Há um pecado original que nunca foi resolvido?
O pecado original está nas nossas cabeças: ou seja, pensar que podíamos criar uma instituição perfeita que conseguisse trazer paz ao mundo e resolver todos os nossos problemas internacionais. Porque é que nunca perguntamos porque é que a Liga das Nações durou pouco mais de 20 anos, enquanto a ONU já dura há pelo menos o triplo disso? Deve estar a fazer alguma coisa boa: o primeiro desafio das instituições é sobreviver.

Os erros de “fabrico” da construção da Liga e da ONU eram evitáveis ou, nos contextos históricos, é difícil imaginar que tivesse sido feito de forma diferente?
Tendo em conta os interesses e ideologias muitíssimo diferentes que existiam por detrás do Império Britânico, da União Soviética e dos EUA, o simples facto de ter sido possível criar a ONU é quase um milagre. A pergunta que temos de colocar é “como é que foi possível?”. A resposta é que os políticos e os estadistas dessa época estavam habituados a pensar no longo prazo, a descobrirem os mecanismos e processos de planeamento que teriam de inventar para criar instituições duradouras. A mim impressiona-me muito o contrato que temos no mundo de hoje, no qual os políticos se vêem a eles próprios como mestres de circo, sendo o palco desse circo o mercado livre global, ou, pior, como destruidores de instituições. Foi preciso uma guerra para acreditarmos na ideia de que as políticas públicas têm de ser pensadas numa perspectiva de estratégia a longo prazo? Parece que sim — o que é uma conclusão deprimente. Mas isso acontece com as guerras de hoje, que são travadas sem qualquer visão estratégica de longo prazo.

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Abertura da 58ª reunião da Liga das Nações, em Genebra, em 1929 Getty images

Em 1815, os diplomatas da restauração europeia criaram o primeiro modelo de governo internacional (o “Concerto da Europa”) para gerir o continente depois da derrota de Napoleão. É aí que o internacionalismo se torna uma política oficial e deixa de ser uma ideia de lunáticos?
Não. Não havia internacionalismo no século XVIII. De facto, o internacionalismo emergiu depois de Napoleão como resposta radical à restauração conservadora do poder na Europa. De um lado, estavam o [príncipe e diplomata Klemens Wenzel von] Metternich e o czar russo. Do outro, os cristãos evangélicos que sonhavam com a paz universal; os liberais constitucionalistas esperançados por conseguir coser e manter juntas várias revoluções contra os Bourbon do [reino] de Nápoles; e os comerciantes que queriam abrir o mundo às mercadorias e aos bens manufacturados e que acreditavam que a paz seria conseguida através do dinheiro.

Esses primeiros internacionalistas queriam combater os “truques da diplomacia”. Que truques eram esses?
O mundo dos diplomatas, das cortes, dos aristocratas e dos monarcas, que queriam a restauração dos reis que Napoleão tinha destronado e rebaixado. Eles olhavam para a diplomacia como a acção dos que defendiam esse sistema.

A palavra “internacional” foi cunhada pelo filósofo britânico Jeremy Bentham em 1775. Que argumentação usou Bentham para defender a sua ideia nova?
Esquecemo-nos de que o internacionalismo e o nacionalismo estavam a emergir como gémeos. Um implicava o outro. O nacionalismo era uma doutrina radical, mas também o internacionalismo, que significava um sistema no qual as nações do mundo iriam unir-se. No pensamento do revolucionário italiano Giuseppe Mazzini podemos ver como o seu nacionalismo o levou ao internacionalismo — só se se juntasse aos húngaros, aos polacos e a outros nacionalistas, é que a luta italiana contra os austríacos iria prevalecer.

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O pensamento do revolucionário italiano Giuseppe Mazzini é revelador de quanto nacionalismo e internacionalismo estavam a emergir como gémeos

É fascinante ler sobre a febre de congressos internacionais nesses primeiros anos, dos serviços secretos ao Congresso Internacional Anarquista de 1907, em Amsterdão, que "passou horas a discutir se organizar o evento era uma posição anarquista respeitável”. Esses laços formais entre as nações são a principal herança do movimento internacionalista original?
Talvez um pouco como agora, o movimento para criar redes muito para além das fronteiras foi abraçado por muitos grupos diferentes. Alguns mantiveram-se fiéis aos velhos impulsos radicais — como a União Interparlamentar [que ainda existe]. Outros avançaram para um internacionalismo revolucionário, isso muito antes dos bolcheviques. Mas outros eram classe média típica — os mais brilhantes internacionalistas eram burgueses, profissionais de todo o tipo: cientistas, engenheiros, advogados, urbanistas.

No início, quais eram as principais diferenças políticas em relação aos limites do “governo do mundo”?
Se era possível ter um “governo do mundo” e, caso fosse possível, se era desejável. Nesta história, relativamente poucas pessoas pensavam mesmo que ter um governo mundial com poderes executivos muito abrangentes era uma boa ideia, apesar de terem surgido alguns romances futuristas fabulosos por volta de 1900 que exploraram a ideia…

Ler sobre a Sociedade para a Promoção da Paz Permanente e Universal ou sobre a Sociedade Pacifista Americana faz-nos parecer incapazes de sonhar ou os grandes utopistas de hoje estão em Bruxelas e Estraburgo e são os inventores da Wikipedia, da Apple e da Google?
Perdemos a capacidade de sonhar utopias, talvez porque a nossa experiência do utopismo do século XX deixou marcas muito negativas. No século XIX também havia sonhadores internacionalistas ligados à tecnologia. A diferença é que, de uma maneira geral, eles eram humanistas — ao passo que a maior parte do tecno-utopismo de hoje quer sobrepor-se ao humano, não libertá-lo — e o que os animava não era o lucro. O que são a Apple ou a Google senão monopólios para gerar lucro? A Wikipedia é um caso muito mais interessante.

Dos arquitectos do internacionalismo, qual é o seu preferido?
Talvez a figura mais impressionante seja Robert Jackson, um homem extraordinário que era tenente-coronel naval nos anos 1920 quando disse ao seu parceiro de ténis, um almirante, como é que o forte de Malta podia ser salvo e a quem depois Churchill entregou a tarefa de evitar que os alemães o capturassem; que conseguiu isso e a seguir geriu a região do Médio Oriente durante a II Guerra Mundial criando um sistema económico unificado — um feito inédito — e depois esteve envolvido na construção das Nações Unidas, antes de deixar a organização decepcionado com Trygve Lie [o primeiro secretário-geral da ONU]. E que se tornou num dos primeiros especialistas mundiais em operações de desastre e autor daquela que é, ainda hoje, a mais devastadora crítica ao modo como a ONU funciona.

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Trygve Lie, o primeiro secretário-geral da ONU

Por que é que durante a I Guerra Mundial os Estados mais poderosos do mundo criaram a Liga das Nações, prescindido de algum poder?
Porque Woodrow Wilson acreditava que era preciso uma nova abordagem à paz e os britânicos sentiam que precisavam de o apoiar — se há um exemplo de puro poder presidencial, ele está aqui.

Faz um retrato de Woodrow Wilson ambíguo. Afinal, Wilson não é um dos heróis da Liga das Nações?
Sem Wilson, não haveria Liga. Mas Wilson tinha uma visão muito particular das relações internacionais. Ele pensava que a política era uma coisa má, os advogados eram piores e tudo podia ser confiado à consciência moral da opinião pública. Isso não o levou muito longe.

O que dividia o Reino Unido e os EUA quanto à criação da Liga?
O governo britânico estava muito dividido e a maioria dos seus membros acreditavam que a ideia da Liga era perigosamente idealista. Mas na verdade, também a maioria das pessoas em Washington.

Que importância teve a Liga, normalmente classificada como um “fracasso”?
É muito interessante ver que hoje está a ser feita alguma investigação muito boa por historiadores que dizem que a versão de a Liga ter sido um fracasso é demasiado simplista. Na verdade, a Liga formou a base de muitas das instituições internacionais que ainda hoje existem — como o modelo de cooperação internacional para a saúde, para as operações de resposta aos desastres, a ciência e a medicina.

O que correu mal? Foi a escolha do francês Joseph Avenol, o polémico segundo secretário-geral, demasiado próximo da Alemanha nazi, foi a sua política colonial, foi o bombardeamento francês de Damasco em 1925? O que contribuiu mais para o desprestígio da Liga?
A sobrevivência da Liga estava ligada à protecção dos acordos de paz da I Guerra Mundial e isso — com os seus esforços para controlar tanto a Alemanha como a Rússia — era provavelmente insustentável. Para tornar as coisas ainda piores, os que entre as grandes potências apoiavam a Liga, faziam-no com reservas. A ONU representava uma versão actualizada da Liga que poderia garantir a inclusão das superpotências. E, de facto, elas mantiveram-se todas na ONU durante a Guerra Fria. Se isso não tivesse acontecido, a ONU teria tido o mesmo destino que teve a Liga das Nações.

Tanto a Liga como a ONU nasceram com regras internas com dois pesos e duas medidas. Quais são os exemplos mais flagrantes desse desequilíbrio?
Se se quer criar uma instituição mundial funcional tem que se ter em conta a estrutura de poder existente. Nos anos 1920 e 1930, as grandes potências contornaram a Liga das Nações e a Liga colapsou: a culpa não foi de Avenol, apesar de ele ter sido um péssimo secretário-geral. Depois de 1945, as grandes potências passaram a sentir-se mais confortáveis em relação às Nações Unidas, porque tinham o poder de veto.

Hoje, olhamos para o nacionalismo como mau e perigoso, mas há 200 anos ele esteve na base de uma ideia que era vista como boa e inovadora. Como é que se deu essa mudança?
A verdadeira diferença é que há 200 anos os nacionalistas eram internacionalistas. Hoje, os nacionalistas pensam que têm de ser anti-internacionalistas. Hoje, os alemães são os únicos que compreendem essa abordagem antiga. Mas a verdade é que toda a União Europeia foi construída de modo a valorizar os interesses nacionais através da cooperação internacional.

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Presidente Donald Trump cumprimenta António Guterres depois do seu discurso na 72ª sessão da Assembleia Geral da ONU, em Setembro, em Nova Iorque, uma estreia para ambos reuters

Faz um retrato muito negativo de todos os secretários-gerais da ONU, talvez com a excepção de Kofi Annan. Uma só pessoa pode de facto fazer a diferença num organização tão grande e complexa?
Não foi minha intenção. [O sueco] Dag Hammerskjold [segundo secretário-geral da ONU, entre 1953 e 1961, quando morreu num desastre de avião] foi uma força de criatividade e poder. O que eu não faço no livro é um retrato idealizado de protagonistas que, muitas vezes, são apresentados desse modo. Tentei, em vez disso, compreender o seu papel em termos de forças políticas.

Se se encontrasse com o actual secretário-geral da ONU, o que lhe diria sobre este eterno apelo à “reforma da ONU”?
Diria que as pessoas falam da necessidade de reformar a ONU há anos, quando a ONU ainda nem existia. Que se concentre naquilo que a ONU faz bem. Que continue a permitir que a ONU desempenhe o seu papel vital, que é um papel simbólico — talvez o seu atributo mais importante. E que leve o debate da reforma a sério, mas sem ter grandes esperanças em relação a nenhuma transformação óbvia. É sempre difícil lidar com as utopias.

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