O futuro do vinho pode estar na água

O vinho é uma bebida intrigante e misteriosa, com incontáveis factores envolvidos na sua génese. Cada ano é um ano diferente.

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Mário Lopes Pereira

Nem mesmo os chamados vinhos tecnológicos são sempre iguais. Por mais conhecimentos que tenham, os viticultores estarão sempre sujeitos à aleatoriedade e imprevisibilidade da criação, à tal mão de Deus. Por isso nos fascina tanto.

A vindima deste ano é exemplar. Ninguém conseguiu prever que, devido às temperaturas altas e, acima de tudo, à seca, a colheita iria ser antecipada em várias semanas. Mas será que foi só o calor e a falta de água que fizeram acelerar desta forma nunca vista a concentração de açúcar nas uvas? Há cada vez mais evidências científicas que atribuem ao aumento do dióxido de carbono na atmosfera um papel preponderante nas colheitas, uma vez que o dióxido de carbono facilita a fotossíntese das plantas. Havendo mais dióxido de carbono, há mais fotossíntese e também mais produção de açúcar.

Como nos últimos 100 anos os níveis de dióxido de carbono presentes na atmosfera quase duplicaram, isso explicaria o crescente aumento dos níveis de álcool nos vinhos. Acresce que a concentração do açúcar via dióxido de carbono parece ser feita um pouco à custa de outros nutrientes importantes, como proteínas e sais minerais. Ou seja, os vinhos estão a ficar com mais álcool e também com mais hidratos de carbono (a frutose é um hidrato de carbono). Sobre este assunto, aconselha-lhe a leitura de um recente e interessante artigo de Lisa Perroti-Brown, em winejournal.robert parker.com.

É do senso comum de que um fruto amadurecido à pressa nunca é tão bom como um fruto amadurecido no seu tempo próprio. E nem sempre o fruto mais doce é o mais saboroso. Nas uvas, há diferentes tipos de maturação. Este ano, e com maior relevo nas regiões mais quentes, as uvas atingiram a maturação alcoólica muito cedo. Porém, em muitos lugares, a chamada maturação fenólica (que, grosso modo, corresponde à formação dos aromas e dos taninos, entre outros compostos que formam o “gosto” do vinho) não ocorreu ao mesmo tempo. Ou seja, as uvas não nasceram equilibradas.

Perante uma situação destas, o viticultor tem sempre um dilema para resolver: ou colhe as uvas mais cedo para não ficar com vinhos muito alcoólicos ou espera mais um pouco e colhe uvas com bons aromas e com taninos mais finos mas com menos acidez e mais álcool. Como o normal é colher uvas maduras e não uvas verdes e amargas, a tendência do viticultor e do enólogo é privilegiar a maturação fenólica em detrimento da maturação alcoólica.

Em teoria, essa é a decisão certa. Mas, em regiões quentes, a resolução daquele dilema não é assim tão fácil, porque esperar pela maturação fenólica perfeita significa quase sempre ter vinhos com pouca acidez e com muito álcool. E, sobretudo hoje, o consumidor procura cada vez mais vinhos com menos álcool. Então, como desatar este nó? Fazer viticultura apenas nas regiões mais amenas, procurar cotas mais altas, utilizar castas mais resistentes à seca e ao calor e com mais acidez natural ou recorrer à rega são respostas possíveis. Mas pode haver uma solução menos drástica e dispendiosa: baixar o álcool nos vinhos com a adição de água durante a fermentação.

Já aqui escrevemos que este foi um ano de água e ácido tartárico (para repor a acidez) nos vinhos. Pode parecer uma heresia dizê-lo, até porque não é legal adicionar água ao vinho, mas em regiões como o Douro ou o Alentejo, onde as uvas atingiram desde muito cedo graduações elevadas, não “baptizar” os vinhos com água, para usar a gíria dos enólogos, seria um tremendo erro enológico. No fundo, trata-se de repor ao vinho a água que a seca lhe roubou.

Há regiões onde esta prática é autorizada. A Califórnia é uma delas. Em Portugal, não está autorizada, como também não o está a utilização de mosto concentrado, que tem um objectivo antagónico: aumentar a concentração de açúcar, para fazer elevar o nível de álcool. Curiosamente, num ano tão quente como o de 2017, o Instituto da Vinha e do Vinho autorizou o uso de mosto concentrado.

Em regiões de climas mais frios como Champanhe ou Borgonha, o uso de mosto concentrado através da chamada “chaptalização” dos vinhos é uma prática corrente, algo que as regiões do Sul encaram com muitas reservas. Mas as regiões do Norte também encaram com reservas a acidificação dos vinhos muito praticada no Sul da Europa, Portugal incluído. Portanto, nada de atirar pedras aos outros.

Voltando à água: é sempre melhor adicionar água ao vinho, durante a fermentação e na dose certa, claro, do que retirar álcool ao vinho através de processos mecânicos. Oitenta por cento do vinho é água. Por isso, talvez esteja na hora de adequar a legislação às mudanças do clima e às tendências de consumo, que privilegiam os vinhos menos alcoólicos. Entre um vinho contido de álcool mas feito com uvas que amadureceram mal e um vinho feito a partir de uvas que amadureceram bem mas ao qual foi necessário juntar um pouco de água para baixar o volume de álcool, é sempre preferível o segundo.

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