O quarteto do Cairo

Das Pirâmides de Gizé ao Museu das Antiguidades Egípcias, da Cidadela ao mercado Khan el Khalili — é à boleia deste quarteto que percorremos o Cairo e séculos, que se fizeram milénios, de história.

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David Silverman Getty Images

É numa manhã de sábado que aterramos no Cairo vindos de Assuão. Com a fama da cidade — cujo nome vem quase sempre seguido de caótica, entre outros epítetos — surpreendemo-nos com a tranquilidade do terminal de voos internos do aeroporto. A surpresa prossegue quando avançamos, sem sobressaltos, pela urbe. Estamos na margem oriental do Nilo, mas só o veremos quando nos instalarmos no oitavo andar do hotel, muito próximo da Praça Tahrir.

Por enquanto, avançamos pela rodovia circular, a chamada Ring Road, que toma vários nomes ao longo do seu percurso rectilíneo: passamos por prédios crus com comércio indistinto no rés-do-chão, depois surgem instalações militares, mansões e palácios. Um dos mais conhecidos, e o primeiro desta zona, o chamado “Palácio do Barão”, sobressai pelo seu inesperado estilo hindu: foi a residência que o barão Empain, belga, construiu para si no meio do seu projecto de criar uma nova “cidade”, de luxo e prazer, então (início do século XX) às portas do Cairo. Sem percebermos, entramos na famosa Ponte 6 de Outubro, que, sim, atravessa o Nilo (e até a maior ilha da cidade, Gezira, onde se situa Zamalek, o bairro das embaixadas), mas é na verdade uma espécie de via rápida com mais de 20 quilómetros de comprimento unindo a cidade de Este a Oeste (“a sua espinha dorsal”). A cidade muda à medida que a atravessamos: de uma que parece saída de um cenário de guerra, tal a decadência dos edifícios que se estendem à nossa volta, passando à cidade “francesa” do século XIX e à cidade moderna dos hotéis à beira-rio. Uma coisa se vai mantendo: os minaretes que se erguem acima dos telhados — não é por acaso que ao Cairo chamam a cidade dos mil minaretes.

E, entre estes minaretes, vivem 45 mil pessoas por quilómetro quadrado, mais coisa menos coisa, o que faz dela um formigueiro humano sob uma das atmosferas mais poluídas do planeta. Mas nada disto vemos ou sentimos nesta primeira incursão: afinal, estamos no último dia do fim-de-semana islâmico, o sábado como domingo nesta encruzilhada social e cultural onde se juntam o Alto e Baixo Egipto, a África negra, a do Magrebe, o Mediterrâneo. E onde o passado e o presente caminham lado a lado de forma quase indiferente aos habitantes de tão natural é essa convergência entre o mundo faraónico e o islâmico, entre os séculos que se fizeram milénios neste Grande Cairo. O grande bazar da História, que vamos descobrir em torno de quatro locais que são parte imprescindível em qualquer roteiro turístico: bem-vindos ao quarteto do Cairo!

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Não sabíamos bem o que esperar da Praça Tahrir, mas certamente não o marasmo indiferente com que nos deparamos. O coração do Cairo, esta “praça da liberdade” (tradução literal) tornou-se sinónimo de luta pela democracia, pelo direito a uma vida melhor, em 2011, em plena Primavera Árabe. Em algumas semanas foi derrubado o governo de Mubarak, anos depois o do sucessor, Mohamed Morsi. Desta gesta nada resta, excepto numa rotunda central, nesta praça que é uma espécie de polígono irregular, um mastro com uma grande bandeira nacional (a substituir um memorial às vítimas de 2011 vandalizado como forma de protesto pela recusa do novo governo em condenar os responsáveis pelas mortes) rodeada de um relvado que já viu melhores dias — ainda que haja um jardineiro a cuidar dela neste sábado-domingo e não seja possível entrar no espaço: íamos fazê-lo mas um polícia prontamente nos impediu. Um casal tira fotos com a bandeira por detrás, ela, Sorah, “Sarah em inglês”, explica-nos num inglês escasso, que “é uma homenagem” e a conversa fica por aqui.

Do outro lado da praça, no espaço diante do Hotel Ritz e do Museu do Cairo, um labirinto de barreiras de ferro entre relva artificial, uma família também tira fotos: duas mulheres de niqab e uma menina posam para um homem. Os olhos sorriem quando lhes sorrimos, são a Dina e a Asma, e por gestos dizem-nos que querem tirar fotos connosco — tiramos várias, com vários telemóveis, tendo como pano de fundo o massivo (e maciço) edifício governamental conhecido por Mogamma, arquitectura a lembrar a soviética.

I. Museu das Antiguidades Egípcias

É num dos cantos da Praça Tahrir que se encontra um dos ícones do turismo dos Cairo — e do Egipto, na verdade. O Museu das Antiguidades Egípcias é o maior (e melhor) repositário de relíquias do Antigo Egipto, que se encontram quase amontoadas nas salas e galerias (algumas com andaimes e tapumes que ainda tornam mais desorganizado um acervo nem sempre identificado) que chegam quase à centena. Por detrás de um gradeamento verde, para além de um jardim onde já se encontram grandes esculturas, desde faraós (a guardar a porta estão Amenhotep III e a sua rainha, Tiy) a esfinges, está o palácio de arenito vermelho do século XIX para onde o museu, fundado em 1858 a partir da colecção de um francês, se mudou em 1900. Antes de chegarmos aos portões há uma barreira de segurança que controla a passagem para a zona, incluindo o hotel Ritz; passando os portões, mais segurança; entrando no edifício, mais segurança (como é habitual nestes locais no Egipto, à laia de aeroporto).

Se as 120 mil peças do acervo que abrangem as 30 dinastias faraónicas merecem muitas horas para se começar a perceber a complexidade deste Egipto antigo, nós não ficamos mais de 1h30. Uma visita em passo apressando, onde quase todas as salas por onde passamos são vistas de relance, passagem necessária para o que na realidade é o nosso (e o de quase todos, imaginamos, que aqui vêm) “destino”. São as duas salas mais emblemáticas do museu, as câmaras dos grandes tesouros, digamos: a Sala das Múmias Reais e a do Tesouro de Tutakhamon.

A Sala das Múmias tem um bilhete especial para se poder penetrar no espaço de temperatura controlada (refrigeração a contrapor com a atmosfera abafada do resto do museu) onde se exibem as múmias de faraós e rainhas das XVII à XXI dinastias. É um “túmulo” colectivo onde os corpos encarquilhados e escurecidos obliteram a grandiosidade em vida das personagens que ali se alinham em caixas de vidro — da rainha Hatshepsut (com a caixa do fígado ao lado), que depois de o marido morrer governou o país (a primeira mulher no mundo a fazê-lo), até ao poderoso (e quase ubíquo) Ramsés II (ainda com tufos de cabelo amarelados), eis a prova de que a morte é igual para todos.

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Tutankhamon tem uma “sala de tesouros” que é a jóia (literal) do museu, mas a sua presença começa na grande galeria que a ela conduz — desde o trono à cadeira cerimonial, passando pelo ceptro e o chicote, símbolos do poder faraónico, uma cama desdobrável, chapéus de sol, objectos quotidianos cuja delicadeza fazem deles decorativos, estátuas de deuses e, já ao fundo, três grandes caixas, como contentores cobertos por folhas de ouro delicadamente gravadas, que, como matrioskas, se encaixavam umas nas outros (na mais pequena estavam os sarcófagos) — e prossegue numa segunda sala sala. E entramos então na sala do tesouro onde é impossível não ser logo atraído pela peça que ocupa o centro e que já vimos tantas vezes: a máscara funerária em ouro maciço e lápis-lazúli do rei-menino da XVIII dinastia. Ainda temos deslumbramento para o resto da sala, onde sobressaem os sarcófagos (também ao estilo “matrioska”).

Novamente na Praça Tahrir, atravessamo-la para o lado em que os edifícios, que abrem espaço para ruas largas, são em estilo francês — uma herança da presença otomana no país. Aliás, a Praça Tahrir era originalmente a Praça de Ismail, sendo este Ismail Paxá, quediva (vice-rei) do Egipto sob o império otomano, que mandou construir esta nova centralidade na cidade. “Os otomanos gostavam muito de França e quiseram fazer do Cairo uma cidade à imagem de Paris, chamaram arquitectos franceses e italianos”, explicara-nos o guia, Maro de alcunha, Mustaph al Zayat de nome civil. O comércio transborda para os passeios e tentamos perceber se há um posto de turismo nas proximidades. Aladdin aborda-nos e a reacção é instintiva a declinar qualquer oferta — já temos Egipto suficiente para termos sido abordados por muitos vendedores. Pergunta-nos o que buscamos e pede para esperarmos. Volta e yalla, “venham”.

Seguimo-lo como podemos entre a multidão que circula, entramos numa rua estreita que não tem, pensamos, aspecto de ter posto de turismo. Não tem. Tem loja de souvenirs. Agradecemos a Aladdin e seguimos. Mas no Egipto não se escapa tão facilmente. Abdallah sai a correr da loja a oferecer-nos um chá de menta. É velha, a loja, onde souvenirs e essências se misturam — sofás vermelhos e mesas baixas fazem parte do espaço onde tudo se organiza desorganizadamente. Abdallah tem orgulho especial nas essências, vindas directamente de El Fayyum, onde a família tem 200 hectares de jardim. Mostra-nos o catálogo, em várias línguas, onde cada essência tem a sua correspondência com um perfume ocidental. Vai contando a história da família, aponta para a foto em que o pai surge com o pugilista Muhammad Ali: “Foi há cerca de 18 anos. Mas ele veio cá duas vezes em alturas diferentes.” Entretanto chegou o chá e o irmão e primos de Abdallah — e estabelece-se uma curiosa dinâmica entre este e o irmão, uma espécie de “polícia bom versus polícia mau” versão vendedores. Tudo acaba em bem com Abdallah a repetir o que nos havia dito no início, no convite para o chá: “Prefiro amigos a uma venda.”

O sol está a pôr-se e nós preferimos vê-lo da ponte Qasr al Nil do que continuar pela chamada “baixa” do Cairo, “a zona de compras”, indica-nos ainda Abdallah — e nós já conhecemos a paixão dos egípcios por compras. O trânsito começa a intensificar-se e atravessar a Praça Tahir já se revela uma missão mais complicada, uma coreografia desenfreada entre os carros (e até carroças vemos). Os acessos à ponte estão congestionados e aqui as carroças de transporte de mercadorias são substituídas por caleches a transportar turistas. O sol explode na margem esquerda do Nilo, por detrás da torre da rádio nacional, e os largos passeios da ponte são uma passarela de famílias, casais de namorados, grupos de amigos e até de um jovem “equilibrista”, que faz movimentos de parkour na balaustrada de ferro forjado. Há quem pergunte se somos “da América? Itália?”, e perante “Portugal” respondam “Cristiano Ronaldo”; Imar e Qosan, fluentes em inglês — “andamos na escola americana” — pedem fotos; nós pedimos fotos; há uma série de telemóveis em punho apontados a outros ou ao cenário.

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No rio Nilo, os barcos passam regularmente e até uma ou outra faluca se vê; o passeio marginal que serpenteia do lado direito entre jardins é também um vaivém de gente e ao fundo arranha-céus cortam o cenário; do lado esquerdo, barcos-restaurantes começam a acender as luzes.

A noite no Cairo à beira-Nilo, pelo menos, é uma festa de luzes e música. Do terraço do nosso hotel chegam remixes techno e house, do outro lado do rio música árabe e clássica, por cima parecem flutuar vozes como numa chamada à oração. É uma cacofonia alucinante (e inesperada para nós), com um cenário iluminado pelas luzes de mil cores que como que bordam restaurantes, bares e esplanadas na outra margem e os barcos de turismo que continuam a navegar, como se de uma gigantesca feira popular se tratasse. A própria ponte Qasr Al Nil tem os pilares iluminados de azul fluorescente e, no tabuleiro, os carros desenham ondulações amarelas e vermelhas; as cúpulas das mesquitas também se acendem e a torre redonda do hotel Sofitel tem paredes como chamas.

Temos de esperar a segunda manhã no Cairo para a nossa peregrinação pessoal. E como é domingo, primeiro dia da semana de trabalho, deparamo-nos com o lendário trânsito caótico da cidade, onde nunca se sabe bem quantas vias tem cada rua — as que os condutores conseguem inventar, normalmente. Por isso, chegar à margem ocidental do Nilo onde fica Gizé é demorado — e só não é um tormento porque a cidade é um puzzle urbanístico e urbano tão diversificado que não conseguimos tirar os olhos da janela a tentar absorver tudo o que nos rodeia. Da beira-rio moderna aos prédios de tijolo, prédios de concreto, grandes palácios e casebres, por avenidas e ruas, avança-se inexoravelmente.

E, de repente, um relance do topo de uma pirâmide (a maior, a de Quéops?) por detrás de prédios que há muito perderam a cor, parecem quase descarnados e têm comércio indistinto no rés-do-chão. A avenida que percorremos é pouco alcatrão e muitas crateras, um enorme separador central de terra batida com entulho, lixo e vagões de metal amarelo que parecem estar ali há muito tempo, autocarros, carros (incluindo os que estão estacionados onde calha) e camelos, riquexós de comida e, quase incongruentemente, uma série de candeeiros de ferro forjado verde que fazem lembrar um boulevard de outras paragens. Havemos de ver duas, à distância, sempre com prédios “aos pés”, até chegarmos ao primeiro check-point (haverá mais). Os prédios, casas e lojas (de souvenirs, claro) continuam para além deste, mesmo até ao portão principal — e só aí a cidade deixa respirar a única das antigas Sete Maravilhas do Mundo que chegou até nós.

II. Pirâmides de Gizé

Quantas vezes já vimos as pirâmides? Fazem parte do imaginário universal, contudo tal nada retira à emoção de vermos diante de nós os colossos de pedra, com uma serenidade e dignidade que nem a multidão de turistas macula. E nós, turistas maravilhados, nem sequer seguimos o empedrado que compõe o percurso; pomos os pés na areia (mais terra, na verdade), a batota por tantos utilizada, para chegar mais rápido ao plateau onde as três pirâmides se revelam finalmente — de outra perspectiva veremos também as três pirâmides mais pequenas construídas para as mulheres do faraó Quéops (Khu-Fu, nome egípcio).

Arafat é o egiptólogo que nos guia pelo complexo onde a grande pirâmide de Quéops surge primeiro, sendo que a de Quéfren e logo a de Miquerinos se dispõem a sudoeste, quase formando um ângulo de 45 graus a partir da primeira. O que vemos actualmente são as pirâmides descarnadas, na sua estrutura básica em degraus, explica Arafat, porque elas eram cobertas com pedras de calcário polido — como se vê ainda no topo da pirâmide de Quéfren, fechada para obras.

Napoleão, na véspera da Batalha das Pirâmides, disse aos seus soldados, “do alto destas pirâmides 40 séculos vos contemplam” — serão 45 séculos desde que começou a construção da primeira, e maior, das pirâmides, por volta de 2560 a.C.. Esta demorou, por exemplo, 20 anos a construir-se, com o trabalho de 400 mil homens que chegaram de todos os pontos do reino para ajudar. “Não trabalharam aqui escravos”, sublinha Arafat, “apenas operários com a crença de que o faraó era um deus e lhes daria lugar no paraíso. Tinham salários, comida e habitação.” Se a construção destes monumentos tem feito correr muita tinta quanto às técnicas utilizadas, há duas semanas foi conhecida uma nova teoria quanto ao transporte das pedras, blocos com toneladas de peso, algumas vindas de Assuão, no Alto Egipto (ou seja, a sul) — terão chegado por via de canais navegáveis.

Enquanto caminhamos pelo complexo percebemos a existência de mais ruínas que são outros túmulos, não só de membros da corte, médicos, engenheiros mas também dos trabalhadores — “todos queriam ficar perto das pirâmides para que os faraós se lembrassem deles e os levassem para a eternidade”.

Não entramos na pirâmide principal, entramos na de Miquerinos. Há uma escada de madeira para chegarmos até à sua entrada, um buraco que seria quase indistinto entre a parede de pedra. Descemos um longo corredor estreito, baixo e muito baixo. Uma câmara em cimento divide-se em escadas para baixo (ao fundo não podemos prosseguir), uma pequena câmara por detrás de portão de ferro cinzento e um pequeno corredor por onde seguimos até à câmara funerária principal — um rectângulo pequeno com uma laje onde terá estado o sarcófago do faraó. Não há pinturas ou hieróglifos, só o cinzento do granito, um pequeno foco de luz e um bem contemporâneo desumidificador. Confessamos o nosso desapontamento com este túmulo, que parece mais um minibunker do que uma sepultura de um faraó.

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Contudo, a experiência em Gizé ainda não terminou. Não, não temos a “sorte” de um turista norte-americano que um dia caiu naquilo que se revelaria o túmulo de um dos engenheiros da grande pirâmide e que depois levaria à descoberta de outros 200 túmulos de trabalhadores, incluindo um que foi submetido a uma operação ao cérebro à qual sobreviveu três meses. Subimos até um plano mais alto, onde está, dizem, o melhor miradouro do complexo. Também é aqui que estão mais vendedores, com o sortido habitual (ímanes, marcadores de livros em “papiro”, bolsas, pirâmides, esfinges e keffiyeh — os lenços árabes que aqui se colocam na cabeça para proteger do sol) e os camelos para passeios que, pelo menos na versão de 15 minutos, parecem não passar de pretextos para tirar fotografias. Nós temos que “lembrar” o guia de que queremos realmente andar, não apenas posar — ele parece contrariado.

E, claro, não podemos deixar Gizé sem visitar a esfinge, corroída pelos anos, uma sombra do que terá sido. Diz-se que representaria Quéfren e faz parte do seu complexo funerário. Aqui prepare-se para tirar fotografias ao “lado” do seu rosto, a “dar-lhe” um beijo, ou até a “colocar” o dedo no topo da pirâmide de Quéops: não precisa de pensar, os vendedores praticamente obrigam a fazê-lo e já sabem as posições certas para os diferentes efeitos.

Do Antigo Egipto ao Egipto medieval, do politeísmo ao islamismo, deixamos Gizé para atravessar o Cairo até à sua cidadela, também conhecida por Cidadela de Saladino, uma vez que foi este, o primeiro sultão do Egipto e fundador da dinastia Aiúbida, que a mandou erigir na segunda metade do século XII. O Cairo, al Qahira, já era a capital do Egipto, e o novo sultão decidiu construir uma muralha que abrangesse não só a nova capital como a antiga, Fustat (ou o que restava dela, depois de o governante a ter incendiado para evitar que caísse nas mãos de cruzados) — as ruínas desta e das anteriores, al-Askar e al-Qatta’i, fazem hoje parte da intricada tapeçaria do que é comummente chamado “Cairo Antigo” — para mais facilmente as proteger dos inimigos. A cidadela, erguida num promontório, seria a peça central desta nova muralha. Assim foi, já que a sede do governo egípcio aqui permaneceu até à segunda metade século XIX, tendo sido também residência real. Hoje é um espaço que alberga mesquitas, museus e palácios que outrora foram casa de sultões e haréns (sendo que muito do que hoje se vê foi herança dos otomanos, que aqui chegaram no século XVI e permaneceram até ao início do século XX, exceptuando um breve período durante a campanha de Napoleão). E as melhores vistas sobre o Cairo, diz quem sabe.

Avançamos, então, pelo Cairo e a primeira visão que temos da cidadela é da cúpula branca gigantesca e dos dois minaretes da Mesquita Muhammad Ali — é o ícone da cidadela, vista de muitas partes da cidade.

III. Cidadela do Cairo

Temos o privilégio de ser levados de carrinha muralhas dentro e estacionar à porta da Mesquita Muhammad Ali, o que sob o sol inclemente é, sem dúvida, agradável. No entanto, esta cortesia acaba por limitar a visita à cidadela. Conseguimos perceber que há, por exemplo, uma grande visita de estudo porque o grupo — ecléctico, juntando jovens de cabeça descoberta, com hijab e niqab (ponto de encontro: as sapatilhas de todas as cores e feitios a calçar eles e elas) — tira fotos diante do Museu Militar Nacional.

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Isto e o exterior da Mesquita al-Nasir Muhammad (arquitectura mameluca do século XIV), é tudo o que identificamos antes de entrar Mesquita Muhammad Ali, a “mesquita de alabastro”, calçado na mão e roupa tapada q.b.. Um enorme pátio interno ladeado por galerias arcadas recebe-nos — é aqui que o alabastro reluz em todo o seu esplendor, revestindo o chão e a parede até cerca de 11 metros de altura. “O alabastro tornou o templo muito caro, mas o paxá [governador de província no Império Otomano] Mohammad Ali queria mostrar uma coisa diferente”, explica Maro. E queria desafiar o sultão, um sinal de emancipação em relação ao império (acabou por ser o fundador da última dinastia de quedivas e reis do Egipto), tanto que fez construir dois minaretes na sua mesquita, algo que só os sultões podiam fazer: estes erguem-se bem alto, 82 metros. No centro do pátio, uma fonte ricamente decorada (e elaborada) congrega olhares. “As mesquitas não devem ter decoração”, nota Rehab Sameer, representante do Ministério do Turismo que nos acompanha, “porque acredita-se que distraem da oração”. Esta tem porque é uma cópia das mesquitas Sultão Ahmed (ou Mesquita Azul) e Hagia Sophia (e lembrar que esta era na origem catedral bizantina), em Istambul. Assim, as paredes externas estão decoradas com caracteres árabes, motivos florais e a lua crescente com estrela, “a cruz do Islão” — “rostos não são permitidos”. Uma ironia, à custa do relógio oferecido por França e que se ergue numa torre: “Nós demos-lhes o obelisco de Luxor [que está na Praça da Concórdia, em Paris], eles deram-nos um relógio que nunca funciona.”

A entrada no salão de oração surpreende, não só pela monumentalidade (já lá iremos) mas, sobretudo, pela informalidade com que crentes e turistas circulam. Há crianças a correr (até nós corremos atrás de uma menina que nos leva o telemóvel), famílias sentadas em grupo, um ou outro homem em oração, sob um vasto tapete vermelho. Há muita cor sob a cúpula principal (54 metros de altura e 21 de diâmetro), rodeada de quatro secundárias, muita por culpa dos vitrais que revestem enormes janelas nas paredes e as pequenas das cúpulas — o efeito é feérico e sentamo-nos para absorver tudo.

O circuito leva-nos para um jardim enorme que é uma fantástica varanda para a cidade — daqui parece inteiramente cor de areia, sem contornos bem definidos. No horizonte, por detrás do amontoado de prédios que se erguem mais altos no horizonte, apontam-nos as pirâmides. Custa, mas lá as entrevemos, como sombras esquivas no denso da cidade. Mais perto, na amálgama quase indistinta abaixo deste monte de Al-Moqattam a que se chama “Cairo Islâmico”, sobressaem as mesquitas — a de Ibn Tulun (que tem o minarete mais antigo do Egipto) e, sobretudo, a do Sultão Hassan, que parece ao alcance da mão, logo abaixo da cidadela, destacam-se. Não saímos da cidadela sem diversa literatura sobre o Islão, disponível gratuitamente numa estante do jardim — Hussein junta-lhe um Corão, em português, que tira de uma gaveta — e sem conhecer um dos vendedores que também aqui não faltam. Mohammed é núbio, como faz questão de dizer, e sabendo de onde somos troca-nos as voltas soltando “Amália e Mariza”.

Numa cidade com 20 milhões de habitantes na sua área metropolitana é normal o trânsito infernal e um metro onde as pessoas se encaixam como peças de Tetris (“os cairotas chegam sempre tarde”), uma poluição que é quase palpável (sobretudo quando o parque automóvel não é dos mais modernos) e problemas de habitação (agravados quando o custo de vida aumenta, quando “aumenta tudo, menos os salários”). Se a maioria das pessoas, numa sociedade que está a ver a sua classe média a desaparecer, vive em apartamentos entre os 20 e os 70 m2 — sem esquecer as famílias que vivem em 10 m2 e aquelas que vivem em villas com jardins —, há muitas que optam por não terminar as casas e com isso poupar dinheiro em duas frentes, na construção e nos impostos. “É tijolos, tijolos...”, desabafa Rehab Sameer. E depois há el-Arafa, “a cidade dos mortos” onde meio milhão de pessoas vive num cemitério criado no século VII, quando os árabes conquistaram o Egipto.

Não entramos na cidade dos mortos. Olhamo-la de cima. Num dia de semana, de onde estamos, parece vazia, só jazigos a perder de vista, uns mais ornamentados do que outros (vemos cúpulas grandes), alguns coloridos, a maioria a tal cor bege e um ar inacabado, algumas palmeiras pelo meio, algumas parabólicas. “Para as famílias egípcias as prioridades são a educação, depois a comida e bebida e, em terceiro, a televisão com satélite”, explica Rehab. “Pessoas pobres podem gastar duas mil libras egípcias numa televisão. Se estás a sofrer com tudo à volta, ver filmes faz-te esquecer o que se passa.” Não entrando, temos de acreditar que há quem viva ali por necessidade e quem opte por tal — afinal, a localização não é das piores e com o (pouco) dinheiro disponível teriam de ir para mais longe.

A nossa próxima paragem é bem no coração do Cairo Islâmico que havíamos observado da cidadela. Há um posto de controlo para passar e estacionar na praça onde se ergue a Mesquita Al-Hussain, sob a qual se crê estar enterrada a cabeça do neto do profeta Maomé, Hussain ibn Ali. É, portanto, um dos sítios mais sagrados do Egipto, este edifício construído no século XIX sobre o original do século XII, onde se guarda o mais antigo manuscrito completo do Corão. Se este é o edifício que domina a praça, são os cafés que se alinham lateralmente que chamam mais a atenção: as esplanadas ordenadas, cada qual com a sua divisória de madeira, estão bem compostas e os empregados tentam atrair mais clientes.

Sabemos que bem perto está a Mesquita Al-Azhar, a mais antiga do Cairo (972), que é também a segunda universidade mais antiga do mundo (a seguir à de Fez), do outro lado da avenida, mas é num labirinto de ruas que vamos entrar.

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IV. Mercado Khan el Khalili

Há quem odeie que se confunda o Mercado Khan el Khalili com o centro comercial com o mesmo nome em Heliopolis (um dos subúrbios do Cairo). Contudo, este mercado era o verdadeiro centro comercial da Idade Média, onde se encontravam mercadores vindos de todo o lado, desde a Pérsia até à China. E é entre ruelas, becos e casas medievais que ainda hoje se dispõe o bazar, num dédalo estreito, tornado mais estreito pelas bancas que transbordam do que normalmente se encontra num souk — desde têxteis a incensos, peles e perfumes, sabões a pedras semipreciosas, ouro e especiarias, joalharia beduína e peças de metais vários ou de vidro — mais as coisas que só se encontram no Egipto, como papiros “genuínos”, pirâmides de muitos materiais, bustos de faraós e rainhas ou estes plasmados em tudo o que se possa imaginar.

Aquí te engaño menos”, grita logo um dos vendedores à entrada — assim mesmo, em espanhol, algo habitual por aqui. Outro dá-nos o cartão, quando dizemos que voltaremos, e lá vêm as fotografias. No que a grandes souks diz respeito, o Khan El-Khalil não é dos mais massacrantes — os vendedores são insistentes mas apenas q.b., não poupam elogios para ajudar a convencer nas compras (os mais habituais por estes dias parecem ser “Shakira” e “Angelina”), mas um sorridente “não, obrigada” resolve tudo. E se os preços nos rés-do-chão são quase todos iguais — e inflacionados, claro, porque regatear é uma obrigação —, quem conhece vai directamente a pátios interiores, às vezes em andares superiores, passando portas e subindo escadas anódinas, para as lojas mais baratas. Mais baratas, porém também abertas a negociações mais ou menos duras.

Este é um território literário e se não passamos pelo café Fishawy, mais de 200 anos de história e conhecido pelos seus espelhos, onde o prémio nobel Naguib Mahfuz não só escrevia como usou como cenário em A Viela de Midaq (ele que também escreveu Khan Al-Khalil), passamos por um café que leva o seu nome.

Na ânsia de percorrer o maior número de ruas possível do mercado no tempo de que dispomos, acabamos por sair dele para nos encontrarmos inadvertidamente naquela que foi a principal rua do Cairo medieval. A rua agora denominada al-Mu’izz li-Din Allah chama desde logo a atenção pela sua largura, para quem sai do claustrofóbico ambiente do mercado, pela calma (não há carros e, neste troço, quase não se vê ninguém) e pela majestade dos seus edifícios. Por isso, mesmo sem saber onde estamos, seguimos, ainda espreitando uma ou outra montra das poucas lojas que existem, verdadeiros antiquários longe das mil e uma réplicas do Khan Al-Khalil. E, depois de uma curva, vemo-nos envolvidos por uma atmosfera quase solene na arquitectura, no arranjo dos passeios, com focos de iluminação e bancos — em contraste com alegria tagarela das pessoas que neles se sentam, ou nas escadarias de palácios ou até em pilaretes

Os volumes de pedra, as cúpulas, as grandes portas arcadas. Aproximamo-nos dos painéis de informação: o Complexo do Sultão Qalawun, a Mesquita-Madrassa do Sultão Barquq, a Madrassa de Al-Nasir Muhammad, mausoléus, mansões... Não o sabemos na altura, contudo é mais de um quilómetro que percorre os séculos X a XVIII no que constitui a maior concentração de tesouros da arquitectura medieval islâmica do mundo.

Não temos a sorte de Maro, que, do nada, nos diz que vive em frente às pirâmides, como se tal fosse absolutamente banal. Claro que para ele é (ele até prefere falar de Eminem, de quem foi o guia durante quatro dias). “Vejo o espectáculo de luz e som” — algo que acontece diariamente e para o qual não conseguimos arranjar bilhetes. Mas tão-pouco é de desdenhar despedirmo-nos da noite do Cairo no Parque Al Azhar, considerado o único verdadeiro parque da cidade. Nasceu sobre um enorme aterro, depósito de lixo durante séculos, e foi construído com fundos do Aga Khan Trust for Culture, num “presente” de Aghan IV ao Cairo, ele que é descendente dos califas Fatímidas que fundaram a cidade em 969. Já é noite fechada e vêem-se famílias a passear, sentadas na relva.

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As vistas sobre a cidade são supostamente fantásticas; nós, do enorme terraço do Lakeside Café, temos vista para a cidadela iluminada de lilás. À mesa, uma sucessão de especialidades locais e os sons frenéticos da música sufi substituem o techno para dar o palco a um bailarino dervixe, o giro constante da tanura a encher a esplanada. Um feixe de luz instala-se na noite, ao lado da cidadela. Não foi a última visão do Cairo, mas vamos recordá-lo muito assim — cheio de luz e som.

A Fugas viajou a convite da Autoridade de Turismo do Egipto integrada na comitiva Miss Portuguesa

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