Andanças e aromas à beira do Índico

A Zambézia, a segunda maior província moçambicana, guarda no baú um bom punhado de histórias e um imenso potencial de atracção para viajantes que procuram itinerários além das rotas batidas. Desde o monte Namuli a Quelimane, de Pebane ao delta do rio Zambeze.

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Humberto Lopes

A viagem pode ser muito mais do que a ditadura do folheto turístico, o autoritário ordenamento do gosto, o policiamento cultural dos prazeres. Pode ser um movimento centrífugo, capaz de fintar, até, as cartografias domesticadas das agências de aventuras a la carte.

Porque não a Zambézia? Porque não uma viagem no tempo, a um outro tempo, tanto ou talvez mais do que no espaço? Há quem por ali ande na mira das praias, da pesca desportiva, das mariscadas, de que a Zambézia é pródiga província. Outros, bastante menos — que a lusa geração dos idos coloniais já esgotou as romagens de nostalgia —, movem-se pelos signos afrocoloniais (que o hoje é também a soma de todo os ontens e nenhum país nasce do zero), ou só afro, ambientes, paisagens, histórias, vivências. Outros ainda, bichos mais raros, por, simplesmente, nada — sim, movem-se por esses nadas que não têm lugar no roteiros turísticos mas que estão lá, nos lugares de acaso da viagem, como uma seiva invisível a lubrificar o mecanismo da vida. Esses tais são também dos que se movem pelas tramas do imprevisto, são dos que, trânsfugas das grilhetas da rotina, das férias cirurgicamente programadas, se põem a andar empurrados pelo vício inconfessado do imponderável — que é, afinal, aquilo com que mais seguramente se pode contar por estas bandas africanas e que é, tantas vezes, precioso sal das viagens, grato tempero só reconhecido mais tarde, paradoxalmente, no conforto de um quarto de hotel.

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E que pecado há nisso? Não andou Ibn-Batuta vinte anos a vaguear, do Magreb à China, por cidades e terras de que se perdeu a conta? Não se fez Ulisses, longe de Ítaca e da enfadonha Penélope, feliz com os seus (alguns) contratempos? Porque não a Zambézia? Porque não um filme sem planificação, sem argumento, sem script, sem moral da história, sem cartografia prévia, sem receita de final feliz?

Um ciclone sem cartão-de-visita

Foi em Nicoadala. Mas podia ter sido em Morrumbala, no caminho dos chapas que vão para sul em direcção ao grande rio Zambeze, ou mais lá para o Norte, nas encruzilhadas de rotas que vêm do Gurué ou de Pebane. Foi em Nicoadala, numa dessas tardes de trovoada e de faíscas mal-humoradas a anunciar o arranque brusco da época das chuvas. De manhã, todos os horizontes estavam claros, nem os boletins meteorológicos conseguiram adiantar a dimensão dos sucedidos dessa tarde — um ciclone em aviso prévio.

Quando a noite chegou, depressa como é costume nas latitudes dos trópicos, e fechou na escuridão o cruzamento, as casas, as árvores, as gentes, já a energia tinha desaparecido de cena. Estamos a ver a ocorrência, outra vez: os faróis dos chapas iluminam as bátegas de chuva, desvairadas pelas coreografias do vento; correntezas de matope engrossam nas ruas; passageiros abrigam-se no alpendre do bar da esquina à espera de um machimbombo atrasado.

Lá dentro do bar, a luz é só das velas dançarinas a toque de caixa das rajadas que entram pelas janelas sem pedir licença, no mesmo entretanto em que uma antiga canção da Lizha James toca no telemóvel de um cliente. Dois sul-africanos esperam encostados ao balcão que a tempestade se canse daqueles exageros.

O taberneiro chama-se Mucavele, serve refrescos à temperatura do ambiente. Para beber é preciso paciência e puxar pela imaginação para esquecer os copos e a bebida, tão mornos como a água da praia de Pebane.

É preciso que se anote no rodapé da história: isto podia estar a acontecer em Sofala, Gaza, Maputo, etc. Dois polícias entram no bar, a pingar pelos bonés a chuva brava que está a alagar Nicoadala (ou Morrumbala, estamos num road-movie sem anotador, sem Moleskines snobs, tudo se há-de escrever a partir dos gatafunhos da memória). Não vêm os agentes para diversões civis, dirigem-se aos boers, adiantam logo o aviso que trazem à flor da língua: na escuridão, lá fora, tem um larápio a rondar o jipe — mal estacionado, sublinham —, um moço todo-o-terreno com profissional empreendedorismo no meio da tempestade. É melhor os vizinhos anglófonos tomarem as convenientes providências. Os sul-africanos agradecem, “oubrrrigadou”. Entreolham-se, demoram maningue a mexer-se, não parecem muito preocupados, mas enfim, levantam-se para ir lá fora espreitar. Os agentes da PRM ficam a demorar olhar e de caminho salta o gesto automático do refresco para as mãos deles, duas ou três notas de rands que um dos boers retira do bolso. Tudo mais ou menos discreto, de acordo com as tradições culturais. Os agentes reagem com movimento de cabeça e mão levantada de quem manda parar o trânsito: não. Não? Mucavele estava atento, atrás do balcão. Ri, atreve-se em explicações: “Esse caso deve ser da trovoada e desse pisca-pisca no céu.” Estão a recusar refresco?

Prazos e companhias, a fala da História

Anda-se por aqui em longas jornadas: a província é maior do que o território português e poucas estradas são asfaltadas. Reinam matagais, florestas, savanas e campos agrícolas. Amiúde passam memórias visuais do tempo colonial, ora numas poucas construções de alvenaria que a guerra poupou ou foram reconstruídas, ora em carcomidos painéis de lojas.

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Na entrada de um prédio de Quelimane, a capital da província, uma inscrição: Companhia da Zambézia. É toda a particular história da colonização nestas bandas do Índico que estas dezanove letras evocam. A mira das riquezas do reino de Monomotapa impulsionou o estabelecimento lusitano na região e a sua exploração inspirou o modelo dos chamados “Prazos”, espécie de impérios ultraprivados, concessões a particulares que beneficiavam de total liberdade de acção. O sistema evoluiria mais tarde para a doutrina colonialista das companhias e surgiram entidades como a Companhia da Zambézia e a Companhia de Moçambique. O tempo que se seguiu foi também a era das grandes plantações — cana-de-açúcar, sisal, copra — que os camponeses locais eram obrigados a cultivar para servir os mercados europeus.

Tudo isso se evaporou, deixando irreais sedimentos, esqueletos de fábricas açucareiras como a do Chinde, cidade quase fantasma no paraíso remoto do delta do Zambeze, ou heranças de vocabulário sobresselente acrescentado à língua chuabo. Há, é certo, paisagens de plantações ressuscitadas, cajueiros vestidos de verde e amarelo, projectos e cantilenas do desenvolvimento numa África eternamente produtora e fornecedora ao mundo das suas matérias-primas, como o foi antes e depois da Conferência de Berlim, e continua a ser agora, já contadas muitas outras conferências e empréstimos milionários naufragados em indizíveis lodaçais. O eterno drama africano, passe a generalização: importaram-se diligentemente as formas de corrupção do estado moderno, mas não o estado moderno.

Enquanto isso, os populares — na estranha gíria jornalística adoptada também pelas televisões locais — lá se mantêm a pedalar nas suas gingas (bicicletas), a costurar capulanas e roupas em velhas máquinas também de dar ao pedal, no mercado central, à sombra das árvores, em alpendres de velhas casas coloniais, quem sabe se ainda do tempo em que era uma novidade nos tops das rádios coloniais o refrão “jurro, palavra d’orra, sincerramente, vô morrer assim...”. Mas não morre, não morre a sina, a marrabenta, o verso popular, o refrão como fala simbólica a evocar uma espada de Dâmocles sobre o país. A banda Ghorwane fez há anos uma versão da marrabenta de Abílio Maldlaze, com temperos afro-jazz, influências migradas da vizinha África do Sul, talvez do veterano Hugh Masekela — sinal de um cosmopolitismo que contraria o nacionalismo oficial que vende ao povo a ideia de Moçambique como o melhor dos mundos. A canção estava a tocar num bar congelado no tempo dos arredores de Quelimane, à vista de um quadro que, na parede, caricaturava um momento de lazer dos antigos colonos. Esta vida é um puzzle incompleto, conclui o viajante ao dar com uma miscelânea de anacronismos.

O povo que pedala

Quelimane continua a tentar dar um salto no tempo, aqui e ali coisas de nada a ver se, tudo somado, a pesada engrenagem entra em passo de mudança. Uma luta de Sísifo contra os elementos, contra a cultura. Arranjos nas ruas, asfaltos, anúncios de passeios e saneamento. Não sem desacordos oposicionistas, agitações de palavras, cartazes, tudo humaníssimas diversões para entreter a vida com o circo prestigitador da política.

Ao lado de painéis publicitários — “Rino Gin”, “Vinho Tintão”, “Tentação”, cartazes promotores de perdições etílicas ao preço da água —, o povo a pedalar. E na capital da Zambézia pedala-se a sério. Chegamos e já estamos a admirar o retrato, o mar de bicicletas que enche as ruas a qualquer hora, mesmo sem ser de ponta. É o transporte público e privado por excelência: que o digam os “taxeiros”, designação dos taxistas de duas rodas, que trespassam avenidas e ruas e cruzamentos com as suas gingas carregadas de clientes sentados de lado no selim suplente. O quadro foi celebrado pelo pintor zambeziano Gemuce nas belas aguarelas que a Vista Alegre imprimiu em peças de louça.

No interior, o país real é sempre assim; tal como nas muitas e variadas lonjuras do mundo, vai mais devagar, é um antifarol soerguido em sítio nenhum ou a modos que nas traseiras do futuro. É até outro mundo, no limite, mas nem por isso menos aliciante para viajar — basta não aspirarmos sempre, insípidos, às mesmas jornadas. E adiarmos, tal como Ulisses (interpretação de Moravia? Ou de Chatwin?), o regresso a Ítaca e à enfadonha Penélope.

Seguimos a pé pelas ruas, entre uma multidão de signos afáveis: a saudação das gentes, tão rarefeita a visão de um forasteiro desembarcado de outro planeta, aquele sorriso gigante da menina dos telemóveis na fachada do inactivo Cinema Águia, a arquitectura colonial do Hotel Chuabo, aquela escadaria art deco, a estação de correios, a luso-árabe Câmara Municipal, a mesquita orientalizada de fachada delicada como um bordado.

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Caminha-se até fora da cidade e à volta dos bairros modestos irrompem palmares, caminhos de terra, a ruralidade da Zambézia ali ao pé. E gingas, sempre as gingas com gente a pedalar. E por toda a parte os painéis esticados à beira da estrada, desesperadamente preventivos: “Quem não tem camisinha fica de fora”. Isso tudo e o vermelho da 2M a disputar ao amarelo solar das laurentinas a sede dos passantes em grandes cartazes cheios de poeira à beira de estrada. É boa, a cerveja moçambicana.

A margem dos bons sinais

Descemos — é como quem diz, que Quelimane é terra plana — até ao Rio dos Bons Sinais. O nome vale-se de histórias náuticas e literárias, quatrocentistas e quinhentistas, lusas, para sobreviver. Como a que conta o desembarque de Vasco da Gama, ancorado ali perto da catedral decadente, carcomida pela humidade e pelo abandono. Pode ter sido ali, naquela margem do rio Cuácua — o nome do rio na língua chuabo — que o navegador descortinou sinais para o bom sucesso da loucura que buscava, o caminho marítimo para as especiarias. Um pouco mais adiante, ainda não o sabia, ia começar por descobrir o tal providencial piloto que haveria de conduzir as naus até Calecute. Fossem quais fossem os sinais, eles ficaram na crónica da viagem e acabaram patrioticamente polidos por Camões em versos épico-históricos: “Mui grandemente aqui nos alegrámos / Co a gente, e com as novas muito mais. / Pelos sinais que neste rio achámos / O nome lhe ficou dos Bons Sinais”.

Terá sido mesmo ali o encontro com a afável gente local? Ali mesmo, no lugar onde está a esquecida Igreja de Nossa Senhora do Livramento? Ou é só sugestão de lenda? O viajante, abismado perante a ruína, tão semelhante à do entreposto do Ibo, nas Quirimbas, prefere perguntar se quem tanto celebra o feito do Gama não tem uma mão para oferecer a este luso património.

O Maiguza dá a cara à tempestade

Isto tudo se via lá de cima quando o avião desceu sobre Quelimane. A velha catedral agonizando diante de uma gorda serpente de águas desfazendo-se em canais atraídos como ímanes para o Índico, entre tapeçarias de verde. Aqui no cais do Cuácua, uma heróica barcaça embarca passageiros para Inhassunge, no litoral que se estende até ao delta do Zambeze.

Deixamos para trás pedaços apodrecidos de madeira ainda em vaga forma de barcos, restos tanto coloniais como das incúrias pós-independência. O convés, a proa, os cascos ainda têm restos de tinta, a mesma tinta resiliente que há meio século continua a revelar o luso nome de baptismo das embarcações. Rio Ave, por exemplo, matriculado no Chinde.

Deixo para trás Quelimane e a pétrea altivez colonial da catedral a bordo do Maiguza, empurrado pelo matraquear de um velho motor cravado no centro do barco, no meio de uma catrefa de passageiros, mercadorias, bicicletas, ananases. Em menos de meia hora estamos em terra firme.

Inhassunge é lugar povoado por gente pobre distante da riqueza que foi a da copra de outros tempos e que a outros proveu. Aos coqueiros deu-lhes uma maleita e as populações ocupam-se agora mais com arrozais e machambas modestas de produtos hortícolas que vão vender à capital. E pedalam: pelos caminhos das plantações, entre as aldeias, atravessando pontes instáveis feitas de troncos de coqueiros, pedalam com as suas gingas, símbolo dos improvisos zambezianos na gesta humana pela sobrevivência.

Anda-se por aqui, portanto, à vista de arrozais, com resquícios dos coqueirais dizimados — restam troncos espetados despidos de folhagem contra o céu. A copra é ainda uma riqueza da Zambézia — não tanto, já, como outrora, quando os (ainda extensos) palmares rivalizavam com os maiores do mundo.

No regresso, horas depois, a brevidade da travessia não salva o Maiguza do caprichoso teatro climatérico, em novo acto da peça estreada na antevéspera, restos de clarões e estampidos a ribombar nos céus e a despejar grossas pingas de aguaceiros. Os toldos vermelhos do barco estalam às sacudidelas do vento, o Maiguza balança, ruge, aguenta-se. Desembarcamos em Quelimane, apanhamos outra ginga, a bicicleta-táxi rola até ao hotel, depressa, antes que os céus desabem de novo.

De Zalala a Pebane: areais infinitos e um arquipélago

Um outro litoral: seremos veraneantes esquecidos já dos infortúnios de Inhassunge e das estradas empoeiradas dos interiores zambezianos, das lonjuras de Lugela e das trovoadas orquestradas com os zumbidos obstinados dos mosquitos. O litoral cheio de promessas hedonistas, o Moçambique das minorias felizes, que alimenta outros parágrafos, folhetos coloridos, cartazes nas feiras internacionais de turismo de Durban e Lisboa. O Moçambique — ou a África, se quisermos abusar uma vez mais das generalizações — germinado no ventre das frases feitas, para facilitar maningue a comunicação. Os grandes espaços africanos, a natureza virgem, o pôr do sol mágico. Tudo o que continua a arrastar turistas para destinos de sonho — ou de pesadelo, depende do ponto de vista.

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Mas aqui em Zalala não chega a haver multidões, a não ser durante o festival cultural anual, em Outubro. Ou nos mercados. Ou nas confusões de algumas paragens de chapa. Zalala, a praia, a menos de uma hora de Quelimane, areias douradas, dunas, um mar verde de casuarinas, longa sombra-refrigério a separar o formidável areal do resto do mundo. O turismo local (e cada vez mais o austral) tacteia, também aqui, os tesouros da longa costa moçambicana: mais de dois mil quilómetros assim, mar e areia e águas tépidas, dunas e dunas e dunas, mangais, coqueiros, casuarinas. E a temperatura da água a namorar os 30 graus quase todo o ano. Para norte e para sul há outras praias no mesmo infinito litoral, muito menos frequentadas do que Zalala, que tem para se defender dos assédios do turismo interno a sua magnânima extensão.

Pebane, com créditos firmados já na era colonial, fica lá nos nortes da província. Há muito tempo os sul-africanos amantes de pesca desportiva e vidas de barbecues a descobriram e a transformaram em estância turística, como fizeram no Tofo, no Xai-Xai, na Ponta do Ouro, decorando-a com cabanas “étnicas”, invenção prática que aos olhos cai melhor do que os bunkers de cimento do (des)gosto local. Sobre as dunas não vimos painéis com a interdição “No blacks”: mas murmura-se que certos destes locais turísticos emergentes afixam estes avisos de má memória, ousadia migrada do país vizinho. A moeda preferida para os acertos de contas, essa, vai sendo cada vez mais o rand.

O litoral norte da província tem uma prova de que as actividades turísticas — incluindo o ecoturismo, por mais brilhantes que sejam as lantejoulas — têm o seu preço. O ecossistema do Arquipélago das ilhas Primeiras e Segundas, poiso das naus da carreira da Índia, tem os seus magníficos recifes de coral, e respectiva biodiversidade, ameaçados pela pesca e pelo turismo. Dugongos, tartarugas e outros bichos podem ficar bem nas fotografias, mas prefeririam sossego — jura um programa, em curso, do World Wild Fund.

Ao fim de dois dias luminosos e de brisas bonançosas que nada contam sobre os caprichos climáticos do Índico, dias propícios a caminhadas pela praia, onde dows desembarcam pescadores e redes atulhadas de peixe, a chuva voltou ao fim da tarde, anunciada pela cacofonia dos trovões. O mar assanhou-se desde a véspera, o amontoado de canoas deitadas na praia, parece, visto de longe, um monte de cetáceos desfalecidos no areal. Voltou uma luz de borrasca, voltaram os aguaceiros ruidosos e fanfarrões que deixam as picadas alagadas num abrir e fechar de olhos. E então? Podemos parafrasear Pessoa, numa famosa asserção sobre o binómio de Newton e a Vénus de Milo, e assegurar que as jornadas de chuva são tão interessantes como as de sol: o que há é pouca gente a dar por isso.

Coda: a memória dos aromas

Voltamos à estrada, deixamos o pequeno oásis de Pebane entregue aos seus paradoxos, e é no machimbombo de regresso a Quelimane que a memória acaba por amalgamar tudo. Há sempre momentos em viagem em que acordamos de manhã e demoramos a descobrir onde estamos. E há momentos em que vivência pessoal e a memória literária, a vivência intermediada de outros viajantes, de outra gente, se confunde, porque os livros nunca param de viajar connosco: os passeios africanos, ingénuos, de Moravia, nos meados dos anos 1950, quando eram içadas as primeiras bandeiras nacionais; a imagem da fronteira poeirenta na margem do rio Senegal, desenho desenhado com palavras de Ryszard Kapuscinski; a aldeia de lugar nenhum do Jesusalém de Mia Couto; Safalane enviando de Morrumbala saudades para Maputo; o amigo Manecas de mãos aperradas ao volante do jipe, a atravessar savanas regressadas à vida em meia dúzia de dias com as primeiras chuvas; o mistério de uma luz estranha a bailar no crepúsculo zambeziano, lá para os lados de Alto Molocué.

Enquanto o machimbombo rola, cortando massas de ar quente e húmido, voam os palmares icónicos da Zambézia. Pelas janelas entram aromas vegetais. Vêm juntar-se ao mapa aromático da província, aromas arrecadados para explodirem mais tarde nas narinas da memória: do capim e do ar marinho e salgado a evolar-se das redes dos pescadores; do mato seco e da humidade do nevoeiro matinal da savana, do perfume do café torrado, da copra, da casca fibrosa dos cocos e da água perfumada do seu ventre, da terra quente acariciada por grandes gotas de chuva, das queimadas da cana-de-açúcar a atirar ao céu novelos de fumo, da castanha de caju a assar nas fogueiras, dos brancos algodoais como imensos lençóis estendidos na paisagem, dos dulcíssimos ananases zambezianos, do óleo de palma da cozinha local, das folhas de chá das colinas à vista do monte Namuli, no Gurúè, dos mariscos a rescender a maresia, das mangas maduras de Novembro, cor-de-rosa rosa rosa, muito rosa, ou rosa fogo, dos cafezais e dos grãos de café a secar ao sol, das dunas povoadas de vegetação rasteira dos areais de Zalala, da humidade vegetal dos mangais nos labirintos do delta do Zambeze, o grande rio que deu nome à província.

Um outro futuro para a velha Catedral de Quelimane

O litoral africano do Índico teve um papel importantíssimo na expansão marítima portuguesa. As naus lusitanas ancoraram em Inhambane, Quelimane, Arquipélago das Primeiras e das Segundas, Ilha de Moçambique, Mombaça, etc. Aí fizeram escala, décadas a fio, os navios da carreira da Índia.

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Agora, se chegarem a bom porto os desígnios que presidiram à criação, em Agosto passado, da Associação dos Bons Sinais, é bem possível que a velha catedral de Quelimane venha a acolher um centro de interpretação da expansão marítima portuguesa no Índico, a par de outras valências, como, por exemplo, as de espaço cultural e de diálogo inter-religioso.

Mas tudo isto só poderá tornar-se realidade se o templo, do século XVIII, for resgatado da ruína e do colapso iminente dado o adiantado estado de degradação. É esse o objectivo imediato da Associação dos Bons Sinais, entidade constituída por portugueses e moçambicanos ligados à capital da Zambézia. O Município e a Diocese de Quelimane, proprietária do imóvel — que deixou de ser espaço de culto em 1974 —, estão abertos às propostas desta associação de defesa do património quelimanense. O problema principal reside no financiamento de uma intervenção com carácter de urgência. Na situação actual da igreja, e com o clima local, trata-se de uma luta contra o tempo.

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