A privacidade dos arguidos e os tribunais

Até onde pode ir a liberdade de informação quando está em causa o direito à privacidade de alguém?

Podermos dizer o que pensamos e podermos saber o que outros pensam, sem receio de sermos presos ou de pagar indemnizações, independentemente de os pensamentos serem inconvenientes ou desagradáveis seja para quem for, é algo de essencial para o desenvolvimento da nossa personalidade.

Para além das opiniões e dos pensamentos, é igualmente essencial termos acesso a uma informação o mais completa possível sobre as questões que nos interessam, sem que a mesma seja filtrada por quaisquer conveniências ou interesses, de forma a podermo-nos movimentar e actuar livre e eficazmente nas sociedades modernas.

Mas até onde deve ou pode ir a liberdade de informação quando está em causa, por exemplo, o direito à privacidade de alguém? Não há soluções fixas e definitivas sobre esta matéria, uma vez que tem de ser face às circunstâncias do caso concreto que se deve dar maior espaço à informação ou à privacidade. Como é evidente, a privacidade que deve ser respeitada no caso de um artista famoso que habitualmente expõe publicamente a sua vida e daí retira vantagens não é a mesma de uma pessoa desconhecida que só passa a ser alvo do interesse público quando é protagonista de um qualquer evento.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), no passado dia 21 de Setembro, debruçou-se sobre este conflito. De um lado, estava o arguido Karl, acusado de ter morto e desmembrado os pais, e, do outro lado, um canal televisivo que pretendia cobrir o seu julgamento. Karl, que confessara os crimes na polícia, ia ser julgado e o juiz presidente comunicou aos jornalistas que as imagens da cara de Karl deveriam ser alteradas de forma a que não fosse reconhecível quando fossem divulgadas, sob pena de não poderem continuar a acompanhar o julgamento.

No seu entender, a privacidade de Karl devia ser respeitada não se divulgando a imagem da sua face, até porque o mesmo nunca proferira quaisquer declarações públicas, antes apresentando um comportamento muito reservado, e um exame psiquiátrico realizado pelo tribunal concluíra que Karl sofria de uma perturbação esquizofrénica da personalidade. Para o juiz presidente, o direito à informação devia ceder perante o direito à privacidade de Karl e à sua presunção de inocência, que também seria afectada com a divulgação mediática da sua imagem.

Quem não ficou satisfeito foi o canal televisivo que recorreu da decisão, alegando que a imagem de Karl já em tempos tinha sido divulgada pela imprensa, que o assunto tinha inegável impacto público e interesse informativo e que não havia que cuidar da presunção de inocência, uma vez que Karl tinha confessado a autoria dos crimes.

Mas os tribunais alemães mantiveram a decisão do juiz presidente de Potsdam por considerarem que era razoável a interdição de divulgação da imagem, bem como a sanção para o seu não cumprimento, a impossibilidade de continuar a cobrir o julgamento na sala de audiências.

Recorreu o canal de televisão para o TEDH, alegando que tinha sido violado o seu direito à liberdade de informação. Respondeu o governo alemão — no TEDH, as partes são, de um lado, o cidadão que se queixa por considerar violado um direito consagrado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e, do outro, o Estado que alegadamente violou esse direito —, afirmando que a proibição da divulgação da imagem da cara de Karl era absolutamente justificada até porque a sua divulgação não acrescentava nada de relevante à informação pública sobre o assunto.

Este problema seria impensável nos EUA, onde a captação e divulgação de imagens dos arguidos é não só legal como promovida pelas autoridades policiais de formas humilhantes, mas a Europa — graças a Deus, diriam alguns — é menos primitiva.

E, assim, no caso Axel Springer SE e RTL Television GMBH contra a Alemanha, considerou o TEDH que a mera interdição da divulgação da imagem de Karl não afectava de forma significativa o direito à informação, antes correspondendo a uma correcta ponderação com os interesses da sua privacidade, pelo que considerou que a Alemanha não violara a CEDH.

No nosso país, acrescente-se, encontra-se consagrado o direito de os arguidos se oporem à captação e divulgação de imagens suas nas audiências de julgamento.

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