Uma trilogia para ajudar a reescrever o colonialismo português

Na terceira parte da sua trilogia sobre o passado colonial do país, André Amálio concentra-se nas guerras pela independência e na geração da pós-memória. Libertação estreia-se esta sexta-feira em Almada, seguindo depois para Lisboa.

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BRUNO SIMÃO
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Durante a sua visita de Estado ao Senegal em Abril de 2017, o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa deslocou-se à ilha de Gorée, antigo entreposto do tráfico de escravos, num gesto institucional que passou pela declaração de que Portugal reconhecera a injustiça da escravatura com a sua abolição em 1761. Mas logo as águas se agitaram, nomeadamente com a publicação de uma carta aberta assinada por académicos, artistas, activistas ou jornalistas (Dulce Maria Cardoso, Isabela Figueiredo, Miguel Vale de Almeida, Mamadou Ba, Inocência Mata, Frederico Lourenço ou André e. Teodósio, entre muitos outros) que acusava o Presidente de não ter reconhecido “a responsabilidade portuguesa no comércio e escravização de africanos” e de omitir “outras formas de opressão que em nome do país foram praticadas e legalmente sustentadas nas colónicas africanas até à extinção do regime colonial português em 1974-75”.

Para André Amálio, investigador e autor teatral, a situação foi “chocante”. “Como é que o Presidente vai àquele lugar e refere um dado esquecendo tudo o resto?” O episódio é referido na derradeira parte da sua trilogia dedicada ao colonialismo português, um conjunto de três espectáculos de um teatro documental e político que se propõe reescrever a História oficial e instar o público a fazer o mesmo. “Ainda estamos a viver este branqueamento da História, esta escolha selectiva dos dados a que nos referimos.”

Com a trilogia formada por Portugal Não É Um País Pequeno (2015), Passa-Porte (2016) e Libertação (em estreia esta sexta-feira no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, seguindo para o Teatro Maria Matos, Lisboa de 12 a 15 de Outubro), André Amálio quer engrossar “um movimento que exige a descolonização dos países europeus”, significando isto que a independência das ex-colónias não implicou, no entanto, uma revisão da História tal como continua a ser leccionada nas escolas portuguesas nem a normalização da presença de negros e afrodescendentes em cargos de poder ou sequer uma igualdade de circunstâncias perante a educação e a justiça. “E não temos estudos sobre isso”, acusa o autor, “porque somos o país em que não se fala disso. Não se fala porque não somos racistas, aqui está tudo bem, somos diferentes”, ironiza. “Continuamos, portanto, a fugir da verdade, andamos a esconder-nos, a perpetuar esta mentira.”

A proposta teatral de André Amálio, construída a partir da recolha de testemunhos que tanto servem as suas peças como a tese de doutoramento que vem trabalhando sobre o colonialismo português, é apontada, assim, a furar o silêncio, a contrariar aquilo a que chama “a necessidade tão grande da identidade portuguesa de santificar a nossa História”. E é também por isso que ouvimos em Libertação, pela voz do próprio Amálio, a reprodução do testemunho de um ex-combatente português na Guerra Colonial confessando o horror de ter matado em várias situações crianças com a sua baioneta. É uma declaração que choca, que é subitamente próxima e que parece implicar cada espectador. Porque faz parte de uma História comum desembolsada em palco não tanto para produzir esse efeito de choque, mas para recusar o abafamento dos actos bárbaros de que a guerra também se fez.

Lucília, Nelson e ex-combatentes

A trilogia de André Amálio deveria ter sido, na verdade, uma tetralogia. Tudo evoluiu a partir da ideia inicial de pesquisar e querer construir uma peça sobre os chamados retornados que desmontasse a ideia de um “paraíso colonial”. Portugal Não É Um País Pequeno (título que recupera uma das máximas da propaganda salazarista) centra-se na história dos antigos colonos portugueses, enquanto Passa-Porte partia em busca das fricções de nacionalidade e identidade desencadeadas pelo fim do império colonial. “A partir daí”, Amálio "quis confrontar as duas vozes, de colonizadores e colonizados, e perceber as diferentes experiências”. Libertação baseia-se em grande parte na recolha de testemunhos de resistentes e independentistas africanos, mas vale-se também das histórias pessoais dos seus dois parceiros de palco: Lucília Raimundo e Nelson Makossa.

E isto porque os dois capítulos finais que André Amálio tinha idealizado deveriam ser consagrados às guerras de libertação e à pós-memória. Por imperativos de tempo e logística da máquina teatral, estas duas vertentes surgem ligadas em Libertação. Os relatos que foi juntando – e dos quais os três, em palco, reproduzem excertos a partir da gravação original que escutam nos auscultadores, modelando a sua voz à do entrevistado – documentam várias formas e experiências de resistência ao colonialismo, não se limitando às histórias dos guerrilheiros dos movimentos de libertação.

Lucília e Nelson foram escolhidos do conjunto de entrevistados de André Amálio – que quis levá-los para o palco pelas suas próprias biografias a meio caminho entre Portugal e África (ela nasceu em Moçambique, vive há muito em Portugal; ele tem mãe angolana e cresceu no Ribatejo, descobrindo a sua africanidade através da música). O que trazem ao espectáculo prende-se com a sua experiência da chamada pós-memória, própria das gerações que não viveram as guerras da independência mas cujas vidas foram profundamente marcadas por esse período.

E são também a imagem de uma geração que Amálio quer ver a juntar-se a um movimento cada vez mais numeroso que exija do Estado uma descolonização de discursos e de acções, sem manipular, menorizar ou ignorar a relação de Portugal com as ex-colónias. A sua esperança, diz parafraseando Amílcar Cabral, o dirigente que lutou pela independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, é que esse seja o destino da marcha imparável da História. Uma História reescrita.

Notícia alterada às 14h51 rectificando o nome de Nelson Makossa

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