Camará trazem um Bonsai musical com um inédito de Agualusa dentro

É um duo paulista, quase trio, que na música traz a marca da miscigenação brasileira. Sexta e sábado actuam em Lisboa, numa estreia portuguesa.

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O duo Camará: Victor Cremasco (voz) e Raphael Amoroso (violão) RODRIGO FIUZA

São jovens, brasileiros, paulistas, conheceram-se no colégio e formaram uma banda. Até aqui, haverá mil histórias assim, sem consequências, mas esta seguiu um caminho mais sério. Victor Cremasco (voz) e Raphael Amoroso (violão) são, hoje, o duo Camará e já têm dois discos de originais gravados, Camará (2012) e Bonsai (2015). Actuam agora pela primeira vez em Portugal, esta sexta-feira no Espaço Espelho d’Água, em Lisboa (22h), e sábado no Auditório Carlos Paredes, também na capital, em Benfica (22h).

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São jovens, brasileiros, paulistas, conheceram-se no colégio e formaram uma banda. Até aqui, haverá mil histórias assim, sem consequências, mas esta seguiu um caminho mais sério. Victor Cremasco (voz) e Raphael Amoroso (violão) são, hoje, o duo Camará e já têm dois discos de originais gravados, Camará (2012) e Bonsai (2015). Actuam agora pela primeira vez em Portugal, esta sexta-feira no Espaço Espelho d’Água, em Lisboa (22h), e sábado no Auditório Carlos Paredes, também na capital, em Benfica (22h).

Na verdade, o duo é já praticante um trio, porque a Victor e Raphael juntou-se um outro seu antigo companheiro de colégio, hoje multi-instrumentista, Roberto Federici. Um trio com um “grupo de apoio” que gravou com eles o segundo disco, já de produção externa: um baterista (Ruiz Mattos), um baixista (Jorginho da Silva) e um guitarrista (Tuco Marcondes), isto além de mais outros convidados, entre instrumentistas e cantores.

Nos primórdios, o duo formara uma banda, Índigo Blue (nome de uma canção de Gilberto Gil), que tocava pop-rock brasileiro. Mas depressa evoluiu para outro patamar, como explica Victor: “Conforme o tempo foi passando, as nossas composições foram se refinando e aquela já não era mais uma identidade que funcionava. Aí nasceu o projecto Camará, que foi na verdade o momento em que todos nós nos juntámos para alguma coisa consistente.”

Inevitável misturar tudo

Como classificar a música do grupo? Victor dá uma ideia. “Há uma frase do Cazuza, ‘museu de grandes novidades’ [na canção O tempo não pára], que parece perfeita para definir a nossa música. É como se fôssemos um filtro de releitura de diversas fontes que nos inspiram com uma roupagem mais moderna. Os nossos discos são uma amálgama, uma fusão de diversos géneros: samba, bossa-nova, música nordestina. Talvez seja uma característica contemporânea da música, ser menos fixa e mais universal.”

Roberto Federici (que no grupo toca sanfona, teclas, guitarra e cavaquinho) especifica: “A própria MPB acaba puxando raízes de muitas músicas e muitos lugares, até pela miscigenação do nosso povo. Se olharmos um período histórico, temos a bossa nova, Chico Buarque, depois logo o tropicalismo, onde Caetano Veloso vai quebrar a clave rítmica da bossa. Como são todos fontes de inspiração para nós, é inevitável misturar tudo. A primeira faixa de Bonsai começa com um lamento de acordeão, nordestino, mas passado esse momento a música já entra com um ijexá, um ritmo de matriz africana.” O único videoclipe do disco disponível no YouTube, de uma outra canção, Há braço, exemplifica também essa mistura.

Sambas com sanfona

Victor e Rafael já nasceram em famílias de músicos e artistas, Roberto não (embora tenha sido o primeiro de entre eles a despertar para a música). Victor: “Sou sobrinho de dois vocalistas de rock’n’roll bastante conhecidos em São Paulo [Nando e Rogério Fernandes] e filho de actriz [Maria Clara Fernandez, que fez o papel de Encarnación na série de TV Os Maias]. A arte na minha família sempre foi uma realidade.” Raphael idem. “O meu pai é músico, guitarrista, acompanhou o Adoniran Barbosa.” Já Roberto chegou à música devido a um acaso: os instrumentos foram-lhe parar à mão. “Vieram através do meu avô, que sempre viveu no campo, numa permuta de dívida. Acabou fazendo a aquisição de um violão, uma viola caipira de dez cordas e uma sanfona de 1976. Ficaram guardados mais de dez anos num armário, maturando, e quando eu tinha oito anos ele colocou a sanfona no meu colo e disse: ‘tente tocar alguma coisa’.”

Tornou-se exímio na sanfona e esta, por sua vez, veio alterar a sonoridade original do grupo. Raphael: “A sanfona foi um elemento-chave para começarmos a experimentar outros ritmos. Até ao primeiro disco, produzido por nós, ainda não sabíamos o que era a sanfona, o que é que ela podia trazer.” Victor acrescenta: “O mais interessante é que transcendeu o que é esperado de uma sanfona. Em shows, fazemos sambas com ela!”

Em termos de influências musicais, todos eles citam nomes diversos. “Para mim”, diz Roberto, “é muito Hermeto Pascoal, até por ser multi-instrumentista": "Para arranjos, para composição, para entender o outro, ter uma empatia musical: até onde pode ir o limite do outro e até onde intersecta com o meu. Mais do que uma influência musical, é uma influência de linguagem.” Raphael: “Depois que comecei a ouvir Chico e Caetano, comecei a aprofundar mais o violão. Guinga acho que é o nome de maior influência. Gosto muito de Almir Sater, tem um disco instrumental de versões bem bonito.” Por fim, Victor: “Tenho uma admiração muito especial pelo Chico Buarque, pela forma como ele construiu uma trajectória musical, uma obra irretocável. É incrível o número de canções e temas que ele compôs. Tenho outras referências, também costumo ter ondas. Agora estava ouvindo muito Belchior [1946-2017], antes de ele falecer, antes ouvi muito Lenine, que já traz uma sonoridade brasileira um pouco mais eléctrica, mais dançante. O Aldir Blanc, compositor, que teve larga parceria com João Bosco, também me inspira bastante. E Elis Regina, enfim.”

Um original de Agualusa

O segundo disco do grupo abre com Bonsai, que tem, no meio da canção, um poema do escritor angolano José Eduardo Agualusa, dito pelo próprio. Raphael explica como foi: “Eu sou formado em Letras e sempre gostei de literatura, portuguesa, africana. Quando o Raphael compôs a música chamada Bonsai, a gente fez uma gravação de referência, ainda sem ambição de ser publicada, e no meio havia um poema, falado. Como a gravação era informal, a gente colocou um de Carlos Drummond de Andrade [dito pelo próprio] só para fazer uma marcação. Quando decidimos gravar o disco, achámos que não fazia sentido ter o Drummond, mas um poema original. Entre os nomes que surgiram, um deles foi o do Agualusa. E uma conhecida nossa, repórter de um site de música brasileira, tinha contacto com ele. Mandei-lhe um mail, ela reencaminhou-o e em três dias recebemos dele um poema feito, gravado, e ainda dizendo, com toda a humildade, ‘veja se serve’. A gente ouviu e se arrepiou: nossa!”