Anne Wiazemsky (1947- 2017) — o rosto da revolução

Anne Wiazemsky (1947- 2017) entrou no cinema sob o signo do acaso, num dos mais célebres filmes de Robert Bresson, Au Hasard Balthazar (que em Portugal recebeu o título de Peregrinação Exemplar).

Bresson, como é sabido, recusava-se a utilizar actores profissionais — ou pelo menos actores com algum tipo de carreira profissional no cinema — e foi exactamente por isso que, para aquele filme, escolheu Wiazemsky, então uma jovem estudante de Filosofia de 18 anos que nada, até então, parecia destinar a uma carreira de actriz.

Podia ter tudo terminado ali, como terminou para o outro rosto adolescente feminino daquele período do cinema de Bresson, a Nadine Nortier de Mouchette, de quem nunca mais se soube praticamente nada. Mas o acaso continuou a trabalhar a vida de Wiazemsky — o filme de Bresson deu-lhe uma aura de estrelinha junto dos meios cinéfilos parisienses, e ela, politicamente activa nos meios universitários parisienses que viriam a estar no epicentro do Maio de 68 (era colega, amiga e colaboradora de Daniel Cohn-Bendit, notavelmente), mais ou menos por acaso, chegou ao conhecimento pessoal de Jean-Luc Godard (JLG) no momento em que este — estávamos em 1967 — entrava no período mais politizado da sua obra, a época de O Maoísta, Fim-de-semana, e dos filmes feitos no seio do colectivo de inspiração "maoísta" que se chamou o Grupo Dziga Vertov.

Foto
Anne Wiazemsky na rodagem de One Plus One, de Godard DR

O encontro de Wiazemsky com Godard teve também uma dimensão pessoal, como se sabe. Viveram juntos, casaram, ainda que numa relação ao que parece tempestuosa e de vida breve (o filme de Michel Hazanavicius Le Redoutable, que muito apropriadamente ou muito inapropriadamente em breve há-de poder ser visto em Portugal, baseia-se num livro autobiográfico dela, contando a história do encontro com JLG e dos primeiros tempos de relacionamento).

Mas terá sido determinante para que Wiazemsky tivesse de facto uma pequena carreira de actriz, como se o "radicalismo" das propostas cinematográficas de Godard se tivesse concentrado nela e no seu rosto, e feito de Wiazemsky uma espécie de "emanação" de uma ideia de radicais liberdade e invenção, extremamente atraente para os mais livres e radicais cineastas da época, gente como Pier Paolo Pasolini, Carmelo Bene, Marco Ferreri, e mais tarde, já nos anos 70, poetas indomáveis como Marcel Hanoun, Philippe Garrel ou Adolfo Arrieta.

Mas na figura da revolucionária de O Maoísta, na encarnação etérea e "pré-rafaelita" da democracia em One Plus One (onde Wiazemsky interpreta uma personagem simbólica, "Eva Democracia", ou seja a "democracia no paraíso", no seu estado mais puro e idealizado), estabeleceu-se a imagem que mais se fixou de Anne Wiazemsky: entre o final dos anos 1960 e o princípio dos anos 1970 ela foi o "rosto da revolução" no cinema europeu. Nada mal para quem vinha de uma família da aristocracia russa, exilada em França depois de 1917... Mas assim é o acaso, como ela tão bem interpretou.

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