Reforçar a confiança dos portugueses na justiça

Sem se concretizarem estas alterações, não será possível termos uma justiça mais rápida, eficiente e ao serviço dos cidadãos e das empresas.

“O mais precioso de nós é o que permanece não formulado”
A. Gide

1. Uma justiça lenta não é uma justiça justa. Não basta que as leis sejam equilibradas e contenham soluções que reflitam valores políticos, éticos e sociais comummente aceites no país, nem que as magistraturas sejam proficientes e sensatas na aplicação do Direito constituído. E mesmo que o quadro normativo esteja desconforme com a realidade, nuns casos por excesso, noutros casos por defeito.

Justifica-se que esse Direito tenha efetivamente como razão de ser os próprios cidadãos, o mesmo é dizer, que estes sejam servidos por esse Direito e não colocados na condição de destinatários passivos de uma qualquer burocracia normativa do Estado. Muitas vezes com valorações que nada têm a ver com o país, os seus usos e costumes.

Para isso será necessário também que as normas jurídicas sejam claras e objetivas e que a sua aplicação ocorra em tempo útil e de forma simplificada, mas também que as pessoas e as empresas possam aceder a uma justiça de qualidade, processualmente célere, geograficamente próxima e economicamente acessível. E garantisticamente imune ao voyeurismo mediático desconforme com a observância dos direitos, liberdades e garantias.

É certo que os aludidos objetivos gerais estão normalmente presentes nos discursos que têm presidido às diversas reformas judiciais impulsionadas nas últimas décadas, mas a verdade é que, na prática, apesar do reforço verificado no domínio dos direitos substantivos dos cidadãos, tal não é muitas vezes concretizado ao nível procedimental. Antes pelo contrário.

O sistema e a organização judiciárias e, em particular, a justiça administrativa são uma vertente que deveria ser estruturante no funcionamento do Estado, sendo um eloquente exemplo do que se acaba de referir.

2. Com efeito, se por um lado é inegável que o poder político e a própria administração judiciária e fiscal proclamam uma cultura de maior respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, por outro não o será, quando na prática, por vezes, se assiste no país a uma crescente burocratização da produção jurídica legislativa e regulamentar e mesmo a muitas vezes injustificadas devassas da vida das pessoas, desrespeitando muitos direitos consagrados constitucionalmente.

A esse respeito, ainda há meses foi divulgado um estudo do Observatório Permanente de Justiça no qual se apurou que muitos tribunais tributários enfrentavam situações de bloqueio como consequência de “abusos” do sistema. Na verdade, refere esse estudo que a administração fiscal teria evitado muitos processos judiciais em que acabou por não ter razão, caso tivesse atempadamente deferido as reclamações dos particulares, ao invés de contra elas decidir, frequentemente “contra jurisprudência consolidada dos tribunais”.

3. Assim, não raro, à ação da administração fiscal responde a justiça fiscal temperando as suas  decisões em relação aos particulares, sendo certo que muitos destes ficaram pelo caminho por deficiente ou mesmo inexistente conhecimento dos seus direitos ou por incapacidade económica em os fazer valer. Porque muitas vezes decide-se sem se ter em conta a realidade. Criando problemas na aplicação da lei aos casos concretos.

E se é um facto que o acesso ao direito e à justiça se democratizou na última década e meia, pela transferência para os tribunais administrativos e fiscais de muitos processos que antes entupiam os tribunais comuns, vários operadores do sector dizem que tem existido exagero na obrigatoriedade de a Autoridade Tributária tomar decisões que a montante se revelam erróneas.

Contudo, segundo dados do Ministério da Justiça (Direção-Geral da Política de Justiça), em 31 de Dezembro de 2016 encontravam-se pendentes quase 73 mil processos, 50 mil dos quais nos tribunais fiscais e perto de 23 mil nos tribunais administrativos. Muitos desses processos estão pendentes há mais de uma década.

Esta situação é agravada pela quantidade de leis e de regulamentos que o Estado em sentido amplo produz (o mesmo se podendo dizer relativamente a organizações supranacionais, como é o caso da União Europeia), muitas vezes até aprovadas de forma avulsa, retalhada e mesmo menos ponderada, o que dificulta e enfraquece a posição dos cidadãos.

4. Aliás, mesmo medidas simplificadoras e facilitadoras do acesso aos serviços públicos que visam agilizar procedimentos administrativos transformam-se, por vezes, em autênticos labirintos nos quais o cidadão e as empresas se perdem (principalmente no caso das pequenas e médias empresas).

A comprovar esta realidade está um inquérito realizado em maio passado pelo Observatório da Competitividade Fiscal (Deloitte), segundo o qual a percentagem de empresários inquiridos que considera o sistema fiscal português “complexo e ineficaz” aumentou 11 pontos percentuais de 2015 para 2017, para 63%, sendo igualmente considerado que “o funcionamento dos tribunais é identificado como principal obstáculo à competitividade das empresas portuguesas”.

Apesar disso, é de ter presente que, no caso da justiça administrativa e fiscal, a celeridade processual não pode ser alcançada à custa do sacrifício dos direitos dos cidadãos, já que tal poria em causa a qualidade dessa mesma justiça e equivaleria à sua própria denegação.

Importa, pois, simplificar e harmonizar a legislação e os procedimentos, com destaque para prazos decisórios e solidez de meios de prova, reforçando os recursos humanos dos tribunais, aumentando o número de magistrados e funcionários judiciais, apostando na sua formação e adequando as suas carreiras e estatutos profissionais, e, finalmente, modernizando as comunicações e a gestão dos processos, designadamente entre o fisco e os tribunais.

5. Sem se concretizarem estas alterações, não será possível termos uma justiça mais rápida, eficiente e ao serviço dos cidadãos e das empresas. Numa altura em que Portugal está a suscitar o interesse de muitos investidores seria lamentável que a ineficiência da nossa justiça comprometesse a atração de investimento de que o país tanto necessita em ordem à consolidação do crescimento económico que presentemente vivemos, mau grado as muitas fragilidades que o Estado ainda revela. E que se propague a percepção de que a justiça portuguesa olha de soslaio para o investimento externo.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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