E o Nobel regressou ao romance

Evitando a polémica dos últimos dois anos, a Academia Sueca deu o prémio a um escritor de romances. Kazuo Ishiguro não gera paixões mas sossega quem acha que o Nobel andava a negar o cânone: é um inglês tranquilo que transporta a tradição para uma literatura que quer arriscar.

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Kazuo Ishiguro no jardim de sua casa após o anúncio da atribuição do prémio NEIL HALL/EPA

É o regresso ao romance. Constatação óbvia depois de ouvir o nome do inglês Kazuo Ishiguro como vencedor do Nobel da Literatura de 2017. Depois da jornalista bielorussa Svetlana Alexievich, em 2015, e do músico norte-americano Bob Dylan, em 2016. Não é literatura, é jornalismo, ouviu-se sobre a primeira. Não é literatura, são letras de canções, escutou-se sobre o segundo, com o mundo literário a dividir-se sobre se se poderá considerar poesia o que Dylan escreve. Quem gosta de apostar assegurou que 2017 seria o ano do regresso ao romance canónico com a atribuição do Nobel a um nome inquestionável. Não há dúvida: ao escolher Ishiguro, a Academia Sueca premiou um romancista, mas, como ironizou ontem Salman Rushdie, satisfeito com a escolha, ele também toca viola e escreve letras para canções. O Nobel não veio, no entanto, por isso, mas pelos seus “romances de grande força emocional, que revelam o abismo da nossa ilusória sensação de ligação ao mundo”, como explicou Sara Danius, secretária permanente da Academia perante uma audiência que reagiu de forma morna, e a desilusão de todos os que antecipavam que este ano o prémio seria para um dos eternos nobelizáveis, como Philip Roth, Joyce Carol Oates, Ismaïl Kadaré, Javier Marías ou António Lobo Antunes. Como se Kazuo Ishiguro não fosse suficientemente sonante para que o Nobel da Literatura recuperasse das polémicas anteriores.

O anúncio foi uma surpresa. Antes de mais para o próprio Ishiguro, que a manifestou num comunicado – “são notícias incríveis e totalmente inesperadas”. A encabeçar a lista de apostas para este ano estavam o queniano Ngugi Wa Thiong'o, a canadiana Margaret Atwood ou o japonês Haruki Murakami (cujos fãs reunidos num templo em Tóquio festejaram, de resto, a atribuição do prémio a Ishihguro). A lógica impunha que, depois de Dylan, os norte-americanos estivessem arredados, e à frente do autor britânico aparecia pelo menos meia dúzia de ingleses prováveis. Casos de Ian McEwan, Salman Rushdie, Martin Amis ou Hilary Mantel. Da Academia, esperavam-se literatura e recados para o mundo, e o principal recado parece ter sido literário. “Kazuo Ishiguro está muito interessado em compreender o passado, mas não é um escritor proustiano. Não escreve para para redimir o passado, mas para revelar o que temos de esquecer para podermos sobreviver enquanto indivíduos e enquanto sociedade”, acrescentaria Sara Danius, sabendo estarem concentradas nela as atenções do mundo literário. Depois da polémica Dylan, Ishiguro veio assim amenizar paixões. E se não será um Nobel incontestável, é pelo menos um nome cuja qualidade literária não foi, até ao momento, publicamente questionada. 

Pelo contrário. “Acho que Ish é uma grande escolha; um verdadeiro escritor, com coisas muito sérias na sua cabeça. Estou emocionado”, disse ao PÚBLICO Richard Ford, outro escritor que costuma aparecer na lista de candidatos ao Nobel. Também ao PÚBLICO, outro escritor americano, Michael Cunningham, destacou a sua coragem para arriscar: “Kazuo Ishiguro é um escritor brilhante e sem medo. O facto de, com alguns livros recentes, se ter aventurado no reino da – suspiro – ficção especulativa atesta, mais uma vez, o admirável compromisso do comité Nobel com o reconhecimento da literatura que tem sido levada menos a sério simplesmente porque não se assemelha o suficiente com a literatura que tradicionalmente ganha prémios.” O irlandês Colm Tóibín, mais um entre os possíveis Nobel, também falou com o PÚBLICO sobre Ishiguro, referindo-se à obra do escritor inglês como “um corpo extraordinário de trabalho, com grande variedade e subtileza, desde Um Artista num Mundo Transitório, de 1986, que explora a culpa e a passagem do tempo, a Os Inconsolados [1995] e Os Despojos do Dia [1989]. Os seus livros estão escritos com grande delicadeza e produzem uma enorme quantidade de energia.” Ao The Guardian, Salman Rushdie, mais um entre os dilectos, festejou: “Muitos parabéns ao meu amigo Ish, cujo trabalho amo e admiro desde que li pela primeira vez As Colinas de Nagasaki [original de 1982, publicado em Portugal em 1989, pela Relógio D’Água]”. Ele toca viola, escreve e também canta. Roll over, Bob Dylan!” E à BBC o próprio Kazuo Ishiguro considerou o Nobel que agora lhe foi atribuído “uma honra magnífica”, que o coloca nas pegadas “dos maiores autores que já viveram”. “O mundo vive um momento muito incerto e eu espero que todos os prémios Nobel possam ser uma força positiva no mundo. Ficaria profundamente comovido se pudesse de algum modo contribuir para uma atmosfera positiva em tempos tão incertos.” 

Esta parece ser a mensagem verdadeiramente política do Nobel da Literatura, que se manifestou publicamente contra o “Brexit”. Num artigo publicado a 1 de Julho do ano passado no Financial Times, escreveu: “Precisamos de um segundo referendo – não para repetir o primeiro, mas para definir o mandato que advém do desfocado resultado da semana passada (...). Este segundo debate terá de ser aberta e claramente sobre a troca entre o pôr fim à imigração da União Europeia e o acesso ao mercado único. Será um debate em que aqueles que defenderam e votaram ‘sair’ por razões não-racistas terão a oportunidade de se colocar do lado oposto aos que o fizeram”. Ainda tem fé, dizia então, que o povo britânico volte a mostrar ser “decente e justo, disponível para mostrar compaixão a forasteiros em necessidade”, unindo-se em torno dos “instintos humanos tradicionais” e isolando “os racistas”.

"Um inglês de olhos japoneses"

Quem é o escritor a quem os amigos chamam Ish? Alguém que certamente celebrou a entrega do Nobel de 2016 a Bob Dylan. “O meu herói era e continua a ser Bob Dylan, mas também gente como Leonard Cohen e Joni Mitchell e aquela geração inteira”, afirmou há dois anos numa entrevista ao Times na qual assumia que enquanto jovem levava o universo das canções muito a sério. “Tínhamos discussões intermináveis sobre a relação entre palavras e música e sobre como aquelas ganhavam vida num contexto performativo”, acrescentava o agora Nobel de 62 anos, autor de sete romances (três adaptados ao cinema), quatro guiões para televisão, cinco volumes de contos e umas quantas letras de canções, entre elas quatro para a cantora de jazz norte-americana Stacey Kent. Alguém que descobriu a literatura aos nove, dez anos com o universo de Sir Arthur Conan Doyle, que estudou literatura nas universidades de Kent e de East Anglia e que, antes de ser escritor, quis ser músico.

Kazuo Ishiguro nasceu em Nagasáqui a 8 de Novembro de 1954 e aos cinco anos mudou-se com a família para uma pequena cidade no Sul de Inglaterra, Guildford. O pai, oceanógrafo, fora convidado para desenvolver um estudo sobre tempestades e o plano da família era ficar por um curto período, mas passariam 29 anos até o escritor voltar ao Japão. Numa entrevista à Paris Review, confessou que o seu japonês é horrível. “É um autor inglês de olhos japoneses”, ironiza Guilherme Valente, editor da Gradiva, que publicou os últimos seis títulos de Ishiguro por valorizar a identidade – onde está a cultura nipónica, uma permanência em toda a sua obra – e a “elegância” do inglês praticado pelo agora Nobel. Isso e a “versatilidade”, continua Valente, “o modo como pega em temas que pedem tratamentos diferentes, tentando não repetir fórmulas”.

Repetir-se, cair numa fórmula, sempre foi um temor de Ishiguro, desde que aos 27 anos se estreou, em inglês, no romance, com As Colinas de Nagasaki, a história de uma japonesa de meia-idade que vive sozinha em Inglaterra. Considerado um dos jovens autores ingleses mais talentosos pela revista Granta em 1983, junto com Salman Rushdie, Martin Amis ou Ian McEwan, Ishiguro habituara-se a fantasiar sobre o seu país de origem e sempre que queria activar a imaginação bastava-lhe pensar no Japão. Seria assim também com Um Artista num Mundo Transitório, narrado por um velho pintor no Japão da Segunda Guerra Mundial. Os dois romances valeram o elogio ao então jovem escritor, mas o prestígio internacional viria com o título seguinte: Os Despojos do Dia (Gradiva, 1995), um original de 1989 que venceu o Booker Prize e seria adaptado ao cinema num filme com o mesmo título protagonizado por Anthony Hopkins. “Não tenho o número presente, mas o foi livro dele que vendeu mais em Portugal”, salienta Guilherme Valente, que se refere a Ishiguro como um escritor de vendas modestas no nosso país. “O facto de vender pouco”, acrescenta, “não me fez desviar de continuar a publicar um autor de que gostei desde o primeiro livro que li”, precisamente Os Despojos do Dia. Seguiram-se Os Inconsolados (1995), Quando Éramos Órfãos (2000), Nunca me Deixes (2005), Nocturnos (2009) e O Gigante Enterrado (2015)

Esta quinta-feira, à data do anúncio do Nobel, dificilmente se encontraria qualquer destes títulos numa livraria portuguesa. “Temos em armazém muitos exemplares do último livro e do anterior. Os outros serão reimpressos e em menos de uma semana esperamos conseguir pôr todos os nossos títulos do Ishiguro nas livrarias”, diz o editor, que apesar de se mostrar “muito satisfeito” com a distinção, por razões “estéticas e intelectuais”, tem poucas ilusões quanto ao efeito Nobel nas vendas. “Há uns anos, o Nobel fazia disparar. Agora não é assim. O Ishiguro tem potencial para vender muito. Desde que as pessoas o descubram.”

E descobrirão a diversidade e o caminho do risco de que fala Michael Cunningham, a tradição canónica inglesa e o culto mais recente pelo fantástico, uma espécie de ficção científica. Mas o que verdadeiramente atravessa todos os seus romances é uma unidade temática: o tempo, a solidão, a curiosidade pelo fluir da consciência e da voz que a habita, a memória, o indagar acerca do humano, a fragilidade tanto do homem como da sociedade, dimensões que a Academia Sueca destacou. Na hora pós-Nobel, a hora de o descreverem ao mundo, salientaram-se a integridade, o sentido de inovação, a elegância da prosa, uma certa nostalgia, as influências. Numa das frases mais citadas imediatamente após o anúncio, Sara Danius definiu-o como o resultado de uma combinação inusitada: “Em poucas palavras, se misturar Jane Austen e Franz Kafka, então tem Kazuo Ishiguro, mas tem de adicionar um pouco de Marcel Proust. Depois agite, mas não muito.”

Eis Kazuo Ishiguro, um escritor muito premiado, com o Booker entre as distinções que lhe foram anteriormente concedidas (o que pode funcionar como uma espécie de legitimação), cuja qualidade de escrita poucos questionam, admirado pelos pares, publicado em todo o mundo, com uma identidade cosmopolita – em suma, uma escolha com que a Academia espera poder “fazer o mundo feliz”. Este Nobel da Literatura é, afinal, outra declaração política, que o mundo parece ter recebido, desta vez, de forma morna. 

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