O abalo das autárquicas

A primeira consequência do pecúlio acumulado pelos socialistas nas autárquicas está visível na saída de cena de Pedro Passos Coelho

A história de que as autárquicas são eleições de proximidade, logo insusceptíveis de leituras nacionais, tem o mesmo fundo de verdade da história da Cinderella. Claro que há amores marcados pelo destino, mas é óbvio que na política real nem há pés únicos, nem sapatos de cristal. Depois de domingo, o país político mudou e mudou mais do que seria previsível esperar há apenas uma semana. Porque houve uma “derrocada”, como assinalava a capa do PÚBLICO, um “terramoto eleitoral” (DN), ou um embate no qual “Costa arrasa Passos” (Correio da Manhã). Daqui para a frente, não se prevê uma mudança radical no perfil do Governo, mas o contexto fornecido pelos partidos que o apoiam e pela oposição tenderá a ser muito diferente. Não se perfila a possibilidade de uma demissão de um primeiro-ministro como em 2001, mas as autárquicas deste fim-de-semana provocaram uma proliferação de pântanos para alguns e de zonas seguras para outros que prometem influenciar decisivamente os próximos tempos da política nacional.

O PS ganhou com uma vitória tão expressiva que, num ápice, deixou de projectar de si a imagem de um tripé sem uma perna para se tornar num colosso imbatível à custa da sua capacidade para secar tudo em sua volta. Vários analistas notaram que os cerca de 38% de votos que obteve no domingo representam o certificado final de legitimidade que a sua derrota em 2015 frente ao PSD não lhe tinha conferido. Claro que falar de legitimidade num Governo legítimo à luz do quadro constitucional é um disparate, mas os que ainda supunham que os socialistas padeciam da falta de representação real da vontade popular perderam o último palco para se apresentar. O que acontece depois de domingo é que o espaço vago entre o poder conquistado nas legislativas e o acumulado nas autárquicas, que até agora tinha sido suprido pelo apoio do Bloco e do PCP, perdeu parte do sentido. O PS não é mais um partido débil, que necessita de ajuda da esquerda para afastar o papão de Passos Coelho; deixou de ser a criança que necessita de mimo para se converter numa ameaça.

Ninguém fica a salvo deste reforço de poder do PS. A primeira consequência do pecúlio acumulado pelos socialistas nas autárquicas está visível na saída de cena de Pedro Passos Coelho. Ainda que a solução do actual Governo tenha inaugurado um tempo novo, a política em Portugal sempre se fez e continuará a fazer-se em torno do protagonismo dos dois maiores partidos do sistema. Quando um engorda demasiado, o outro tende a sofrer com problemas de nutrição. Passos Coelho não estava a ser capaz de equilibrar esta relação de forças. Os barões do partido sabiam-no há algum tempo. As bases também. Mas faltava-lhes a prova cabal. Que chegou domingo. Passos tornou-se dispensável a bem da ambição do PSD em ganhar o máximo músculo possível para as legislativas de 2019.

Mas se a opulência do PS serve para sublinhar a anorexia do PSD, serve ainda mais para exibir a irrelevância crescente do Bloco e do PCP. O congelamento do universo eleitoral autárquico do Bloco prova as suas dificuldades em fazer-se ouvir. A severa derrota dos comunistas na zona de interface com o Partido Socialista atesta as suas dificuldades em preservar a identidade e o discurso original e autêntico que era a base da fé da sua militância. Ao comungarem com o Governo a lengalenga da distribuição de rendimentos e a devolução de direitos, deixaram os microfones do palco principal a António Costa e assumiram o papel de meninos do coro. Os que estão dispostos a acolher com simpatia esse discurso como sendo a parte essencial do país que pretendem ou projectam, em especial a função pública, tenderão a preferir a voz principal à repetição, o original ao sucedâneo, o PS aos seus apêndices. Todos os outros, os militantes das causas profundas da esquerda da esquerda, os que detestam a Europa, odeiam os banqueiros e defendem um amplo programa de nacionalizações acabam por achar que o Bloco e o PCP são cada vez mais exemplos do “radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista”, como muito provavelmente os designaria hoje Álvaro Cunhal.

Muita da atractividade do discurso dos dois partidos mais à esquerda estava na sua ortodoxia e na sua intransigência. Na sua pose contrapoder, que era particularmente vívida e útil no Parlamento. A sua superfície de contacto com o poder expurgou-os dessa aura meio romântica, meio revolucionária. A prazo, estão condenados a deixar de ser uma iguaria para se resumirem ao papel de tempero, como os liberais na Alemanha ou na Inglaterra. Hão-de ser votados não pelo que representam, mas pelo papel de auxiliar que possam vir a desempenhar numa solução de Governo do PS. Isso não é mau para o sistema (pelo contrário), mas implica uma absoluta reversão na sua identidade e no seu programa.

Os partidos são organismos vivos que, como tal, baseiam os seus actos à luz do instinto de sobrevivência. Como a luta pela vida no PSD, no PCP e (muito menos) no Bloco está dura, é de elementar lógica suspeitar que daqui para a frente muita coisa pode mudar. Não, ninguém à esquerda vai comprometer a aprovação do Orçamento do Estado para 2018. Está fora de questão qualquer gesto ríspido que denuncie rancor. O Bloco e o PCP namoraram tempo de mais com o Governo para que se possam separar por um arrufo. Mas ambos sentem que precisam de espaço – para insistir na terminologia amorosa. Num primeiro momento, em especial o PCP, deixarão as suas forças vivas, sindicatos na primeira linha, a criar um maior distanciamento. Um dia, tarde ou cedo, o PS será incapaz de satisfazer mais uma exigência incomportável para o orçamento e, nesse dia, o enlevo acabará a tempo de se reunirem as hostes para o combate das legislativas.

Sem os sentimentos de perda do PSD nem os dramas existenciais do Bloco e PCP, o CDS é juntamente com o PS o partido que sai com a sua imagem reforçada. Assunção Cristas teve o mérito de herdar um partido conservador ameaçado pelos mesmos vírus que atacaram o PSD e, sem recusar o passado, foi capaz de sugerir um discurso alternativo para o futuro. O seu CDS está a deixar de ser o partido sisudo dos fatos às riscas para se transformar numa organização de vestidos curtos e coloridos. As idas às feiras deixaram de ser enfados de campanha. O CDS tem menos gravitas e torna-se mais popular. O programa conservador centrado nas famílias vai-se alargando à dimensão mais liberal das políticas pró-negócios e pró-iniciativa privada. Assunção, sabe o que quer e por onde vai. A vitória em Lisboa é o momento que prova a sua visão e a consuma como líder indiscutível do partido. O PSD tem pela frente mais um obstáculo para crescer. 

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