Ricardo Pinto, um vaivém de "bons sentimentos"

Determinado, perfeccionista e humilde, o bicampeão mundial de solo dance é uma das coqueluches da patinagem portuguesa. Ao PÚBLICO, falou sobre as coreografias, a evolução da modalidade e a importância de chegar ao “ponto óptimo no tempo certo”.

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Nelson Garrido

Já transportou o Cinema Paraíso para a pista, já vestiu a insegurança de O Fantasma da Ópera e, no mês passado, colocou uns patins debaixo de New York, New York. Os juízes validaram a escolha atribuindo-lhe o título mundial na categoria de solo dance e confirmando que a decisão de Ricardo Pinto de não se deixar abater pelas dificuldades foi a mais acertada. Como na vida de todos os atletas de alta competição, nesta história também há momentos de dúvida. Mas a relação entre o portuense e a patinagem artística há muito que criou raízes.

Por estes dias, nas ruas de Custóias, Matosinhos, sucedem-se os cumprimentos, os votos de parabéns e de sorte para o futuro. É sempre bem-vinda a fortuna no piso escorregadio que é o desporto de elite, mas os principais catalisadores do sucesso estão nas mãos de Ricardo: o talento, a disciplina, a capacidade de trabalho. Foram eles que contribuíram para a medalha de ouro conquistada em Nanjing, nos recentes Roller Games disputados na China, tal como tinham concorrido para os cinco títulos europeus (2011, ainda como júnior, 2013, 2014, 2015 e 2016) e os dois mundiais (2011 e 2015) que a precederam.

Aos 24 anos, o estudante de Biologia, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, continua a colher os frutos de uma semente lançada há 19, sob o patrocínio da mãe e com alguma resistência à mistura. “Comecei com cinco anos e, no início, foi um pouco complicado. Damos uns trambolhões, magoamo-nos, mas é como tudo… Se dissermos a uma pessoa que se vai magoar, ninguém quer tentar. Algumas vezes eu dizia que queria sair, mas a minha mãe insistiu e, até hoje, não me arrependo nada”, confessa ao PÚBLICO.

Estava no sítio certo à hora certa. A calçar os patins num dos clubes mais conceituados do país (ex-Rolar Custóias Clube, actualmente Rolar Matosinhos) e na iminência de se cruzar com Hugo Chapouto, o primeiro campeão mundial por Portugal, em 2009, e o então futuro treinador/conselheiro/psicólogo de Ricardo. Juntos, com a colaboração de Fernanda Ferreira, tomam hoje as decisões estruturantes de uma carreira que vive muito da capacidade de os atletas se reinventarem.

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Para se ter um vislumbre da extensão do trabalho preparatório, do planeamento feito nos bastidores, aqui fica uma breve ajuda: “Começamos por escolher a música e, normalmente, são os treinadores que abrem um leque de escolhas para, depois, os três seleccionarmos a que achamos melhor para cada ano. Isso depende do estilo que eu gosto de patinar e do que patinei no ano anterior, para ser sempre diferente, porque isso conta para os juízes”, detalha Ricardo. “Eles gostam que apresentemos coisas novas e tentamos sempre variar os tipos de música e os ritmos que escolhemos.”

O calendário que suporta este edifício competitivo é exigente. Por norma, os treinos arrancam a meio de Outubro e, durante dois meses, há margem de manobra para o patinador tentar “aumentar o vocabulário, experimentar coisas novas” para depois introduzir nas coreografias. Em Dezembro, começa então o trabalho de pista — sempre articulado com sessões de musculação — em redor da nova criação. “É essencial uma boa planificação para se chegar à prova num bom momento, sem entrar em overtraining. O objectivo é chegar ao ponto óptimo no tempo certo”, ilustra.

É fácil concluir quão determinante é o planeamento numa modalidade tão dependente dos detalhes, mas é importante haver sempre uma margem para improviso, em contexto de treino — cuja carga vai aumentando ao longo da época — ou de competição. “Os erros em prova acontecem e quando surge um percalço acabamos por mexer na coreografia e disfarçar no momento. Mas de vez em quando também sai uma coisa inesperada durante um treino, em que eu me engano e que o Hugo acha que fica melhor... Depois trabalhamos sobre isso para ficar mecanizado.”

Mecanizado até ao ponto em que os gestos fluam naturalmente, em que cada sequência dialogue com a seguinte. Pedimos a Ricardo Pinto para recuperar os momentos mais marcantes do seu trajecto e a resposta foi esta: “Adorei a coreografia com que ganhei o Mundial de 2011. Na altura achei extraordinária. Marcou-me muito porque foi o ano em que consegui as primeiras medalhas internacionais. Também me deu muito gozo fazer a de 2012, o Cinema Paraíso, e a d’O Fantasma da Ópera, de 2015, o meu primeiro título mundial sénior”.

Quem quiser ver in loco a coreografia que conquistou os Roller Games — baseada no tema New York, New York, que surpreendeu pela positiva o patinador portuense — pode sempre esperar pelas próximas competições em Portugal. Nessa escalada rumo ao próximo palco internacional, já que a chamada à selecção depende da participação nas provas distritais e nacionais, o campeão do mundo revisitará Frank Sinatra, guardando uma nova temática para os Mundiais de França.

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Para já, a surpresa reservada para 2018 está ainda “em fase de pesquisa”, mas uma coisa é certa: exigirá um fato à altura do acontecimento, como ocorre com as demais provas de dança livre em que Ricardo participa. Uma indumentária sempre feita à medida e que é custeada pela família, ao contrário do que acontece com as demais despesas de participação ao serviço da selecção.

“É verdade que há países com melhores condições que as nossas, mas as nossas condições são muito boas. Eu tenho apoio de material, como os patins. E temos a sorte de a federação suportar os nossos custos quando vamos lá fora. Nesse aspecto, Portugal até está muito bem cotado”, assume, desvalorizando a escassa visibilidade pública de modalidades que têm gerado grandes resultados no país. “Neste momento, a patinagem em Portugal está a evoluir bem e o facto de ter passado a integrar o desporto escolar contribui para isso. Têm aparecido clubes novos e, embora o Norte seja a zona onde existem mais clubes, o resto do país também tem crescido.”

De acordo com as estatísticas do Instituto Português do Desporto e Juventude, em 2015 havia 12.270 atletas inscritos na Federação de Patinagem de Portugal (FPP), que tutela modalidades como a patinagem artística, o hóquei em patins, a patinagem de velocidade ou o hóquei em linha. Um número só superado, nas duas décadas anteriores, pelo ano de 1996 (12.537). Se estreitarmos a análise à patinagem artística, e segundo os dados disponibilizados ao PÚBLICO pela FPP, regista-se um crescimento considerável nos últimos anos: de 3372 atletas em Janeiro de 2012 passou-se para 7397 no corrente mês. 

Quando olha para trás, para as primeiras quedas em pista, Ricardo Pinto rapidamente conclui que nesta janela temporal muito mudou no reino da patinagem. “Os métodos de treino não se comparam com o que acontecia há cinco ou dez anos. Quando comecei a patinar, lembro-me de estar a treinar e ser sempre repetir, repetir, repetir. Agora não, faz-se mais observação: são vídeos que vemos enquanto treinamos para percebermos os erros que cometemos em vez de ser só outra pessoa a apontar-nos o que fazemos mal.”

Atleta de elite e treinador dos escalões de formação no Rolar Matosinhos, o outrora praticante de karaté e natação é olhado com respeito e admiração entre as quatro paredes do Pavilhão Municipal de Custóias. O palmarés justifica-o, ainda que durante algum tempo tenha deixado os louros para segundo plano.

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“Comecei há pouco a fazer um santuariozinho no quarto, com algumas das conquistas que para mim são mais sentimentais. E tenho lá uma que me custou muito, no ano passado, porque tive alguns problemas e, apesar de não ter vencido [terminou em segundo lugar], fiquei muito satisfeito e com a sensação de que este ano conseguia chegar lá”, desabafa.

Foi uma daquelas fases cinzentas, em que as interrogações minam a confiança e a vontade. “Quando as coisas não estão a correr como idealizamos, começamos a ter dúvidas. Mas ponderei bem e o que mais me levou a não desistir foram os momentos vividos no treino e o muito que me trouxe a patinagem. Os bons sentimentos, principalmente. É algo que eu espero não largar durante mais algum tempo.” Sem prazos. Enquanto os pés clamarem pelos patins.

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