Jogar a condensação do tempo

UNDATED é uma performance em aberto elaborada a partir de um percurso coreográfico que reactiva tanto os gestos como a sua ausência com o humor e a inteligência que reconhecemos em Martine Pisani.

Foto
DR

Onze performers em palco dançam um jogo (ou jogam uma dança) a partir de material coreográfico que se foi inscrevendo nos seus corpos e nas histórias de uns e de outros. Excertos de performances anotados em pequenos papéis que se trocam como um gesto lúdico, e vão sendo (re)activados com a singularidade de cada performer. Neste jogo de trocas, introduzem-se momentos que, ainda que revestidos de uma suposta seriedade, logo se desvanecem num humor perspicaz que desmascara as expectativas do espectador. As frases ditas em uníssono tornam-se incompreensíveis, os gestos permanecem incompletos e a dinâmica da apresentação dos excertos coreográficos carece de lógica, o que ora se torna hilariante, ora insiste na incompletude do inacabado.

UNDATED é, na sua literalidade, o não datado, o que visa precisamente escapar à incisão temporal e condensar o que foi datando a história de duas décadas de obra de Martine Pisani, coreógrafa francesa nascida em Marselha e sediada em Paris, fundadora, em 1992, da Compagnie du Solitaire. Herdeira da experimentação pós-moderna, nomeadamente através de formação com Yvonne Rainer e David Gordon, Pisani enquadra-se no contexto da dança francesa das últimas décadas do século XX, e nomeadamente no movimento de questionamento ontológico da dança e da sua expansão ao coreográfico, promovendo o movimento não virtuoso, o não formalismo, o processo enquanto resultado.

Trata-se de uma performance que reúne coreógrafos, intérpretes, técnicos de som e de luz que de algum modo participaram nas obras mais célebres de Pisani com o propósito de resgatar intuitivamente, por um lado, os elementos agregadores subjacentes à singularidade de cada obra, e por outro, a matéria reminiscente e estruturante da experiência da coreógrafa e da vivência dos performers.

Esta performance foi influenciada, como refere Pisani, pela analogia entre o fenómeno físico da condensação — a passagem do estado gasoso ao líquido resultante da agregação de moléculas que antes estariam isoladas e em suspensão — e o seu percurso de criação coreográfica. Na sua raiz etimológica, a palavra "condensar" deriva do latim "condensare", que significa “tornar mais denso”. E Pisani interroga-se precisamente sobre como evidenciar aquilo que, embora invisível, susteve quase duas décadas de criação coreográfica. Uma “condensação de presença humana” que se foi sedimentando desde peças como Sans (2000), o trio em que Laurent Pichaud, Theo Kooijman e Olivier Schram renderam o público à perspicácia do humor subtil e à desconcertante beleza do não virtuosismo que subleva a natureza humana na obra de Pisani.

Martine Pisani devolve o olhar ao espectador quando apresenta tanto os gestos como o vazio entre eles, a sua desconexão e a desestabilização das expectativas, a incerteza da compreensão do que se observa. Esse carácter deslaçado evidencia-se na peça, o que a torna menos concisa e sólida enquanto performance acabada, tenha ou não sido esse o seu propósito.

Ce que je regarde me regarde (2001) ["o que eu observo observa-me", em português] é o título de outra performance de Pisani que nos recorda esta devolução do olhar que persiste em cada experiência estética, como elaborou brilhantemente Georges Didi-Huberman no seu livro O que nós vemos, O que nos olha (Dafne, 2011): “O que nós vemos olha-nos dentro”. UNDATED é uma performance em aberto elaborada a partir de um percurso coreográfico que reactiva tanto os gestos como a sua ausência, fazendo-o com o humor e a inteligência que reconhecemos em Pisani, sem todavia obliterar a dimensão de finitude da vida, e a incompletude da sua e de toda a obra.

Sugerir correcção
Comentar