Atirador ou terrorista? É complicado...

A cor da pele, a nacionalidade e a religião pesam muito sempre que há um ataque como o que aconteceu no Nevada. Mas o mais importante é esperar para se perceber se esse ataque foi motivado por questões políticas ou religiosas.

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Uma mulher acende uma vela em homenagem às vítimas do ataque no Nevada Chris Wattie/Reuters

Sempre que um homem, geralmente branco e norte-americano, dispara de forma indiscriminada contra uma multidão nos Estados Unidos, uma das avenidas de discussão que se abrem nas redes sociais é sobre os termos "terrorista" e "atirador". Para uns, qualquer atirador é também um terrorista; para outros – geralmente entre as forças policiais e os meios de comunicação –, cada caso é um caso.

E o caso mais recente é o do ataque no estado norte-americano do Nevada, onde um homem branco norte-americano matou 59 pessoas a partir de um quarto de hotel e se suicidou antes de a polícia ter arrombado a porta.

O suspeito é Stephen Craig Paddock, de 64 anos, descrito pelo seu irmão como um homem normal, que pouco mais fazia do que jogar em casinos, arrendar casas e comer burritos.

Apesar de o autoproclamado Estado Islâmico ter vindo dizer que ele era um soldado do califado convertido ao islão há poucos meses, nem os seus familiares nem a polícia norte-americana encontraram, até agora, quaisquer indícios de associação de Paddock a um grupo terrorista.

E, numa informação igualmente importante para enquadrar a distinção entre atirador e terrorista, nenhum dos familiares, amigos ou vizinhos do suspeito conheciam qualquer posição forte sobre política, religião e posse de armas.

Ainda assim, vários sites e grupos de activistas na Internet ligados à direita radical norte-americana estão a propagar a teoria de que Stephen Paddock era um perigoso esquerdista "que gostava de Rachel Maddow" e estava "associado ao Exército Anti-Trump" – um grupo cuja existência nunca foi provada e que o site de teorias da conspiração InfoWars descreve como sendo um exército de 30.000 soldados liderado pelo ex-Presidente Barack Obama.

Se pusermos de lado, por uns minutos, essas duas teorias (a de que Stephen Paddock era um soldado do califado e a de que Stephen Paddock era um soldado anti-Trump), e se nos focarmos apenas nos factos conhecidos, a história dos primeiros momentos do que aconteceu no Nevada no domingo à noite não é muito diferente das histórias de tantos outros ataques, como os que resultaram na morte de 49 pessoas na discoteca Pulse, em Orlando, na Florida, e de nove pessoas numa igreja metodista, em Charleston, na Carolina do Sul.

Num primeiro momento, a preocupação é saber o número de vítimas, mas logo a seguir (muitas vezes ao mesmo tempo) há uma necessidade de se tentar perceber se o atacante ou atacantes são ou não são muçulmanos – se forem muçulmanos, há uma grande probabilidade de o Twitter e o Facebook começarem a ser entupidos com mensagens de utilizadores que têm a certeza absoluta de que o ataque foi motivado por questões religiosas e políticas; se não forem muçulmanos, há uma grande probabilidade de o Twitter e o Facebook começarem a ser entupidos com mensagens de utilizadores que se indignam com o facto de a polícia e os jornais não chamarem terroristas aos atiradores.

Mais de 100 definições

O grande problema é que não há apenas uma definição para o que é um terrorista ou um acto de terrorismo – num estudo feito para o exército norte-americano em 2003, um dos mais reputados especialistas em estratégia militar, Jeffrey Record, disse que outros estudos encontraram mais de 100 definições de terrorismo.

"A actual estratégia de segurança nacional norte-americana define terrorismo simplesmente como 'violência premeditada e politicamente motivada contra inocentes'. No entanto, esta definição abre a porta para que se pergunte quem é inocente, e por que padrão é determinada a inocência", disse Record, lançando ainda mais confusão para cima da mesa.

Para ajudar a apertar um pouco mais a definição de terrorismo nos Estados Unidos (e nem vale a pena falar sobre outros países, porque todos têm a sua própria definição), a lei define como terrorismo "violência premeditada e politicamente motivada contra alvos não-combatentes por parte de grupos subnacionais ou agentes clandestinos". Ainda assim, esta definição é também criticada por Jeffrey Record, por não abranger o terrorismo de Estado.

Em duas palavras: é complicado. Em mais palavras, ditas por Conor Gearty, professor de Legislação de Direitos Humanos na London School of Economics: a discussão actual sobre o que é terrorismo "é a serva retórica da ordem estabelecida, independentemente dos crimes que ela própria pratique".

A primeira lição a tirar de tudo isto é que decidir quem é tratado como terrorista ou como atirador é uma tarefa difícil – porque há muitas definições de terrorismo; porque depende dos países em causa; porque depende da interpretação que a polícia de cada um desses países faz de um determinado ataque; e porque os jornalistas teriam de avaliar todas estas condicionantes em poucos segundos ou minutos para decidirem se escrevem terrorista ou atirador – e decisões como essa não devem ser tomadas pelos jornalistas individualmente nas notícias que escrevem, por ser um tema com conotação política e que condiciona a forma como os leitores processam essa notícia.

Por isso, as notícias reflectem muitas vezes as opiniões e declarações da polícia. No caso do ataque no Nevada, o xerife local disse que não tinha razões para falar num atentado terrorista porque não sabia quais eram as crenças do suspeito – no fundo, não sabia se o atirador agiu com motivações políticas ou religiosas, algo que é necessário para se ser acusado de terrorismo nos Estados Unidos.

Por outras palavras, se um atirador matar dezenas de pessoas a partir de um quarto de hotel ou numa universidade, e não tiver motivações políticas ou religiosas nem o objectivo de sabotar ou alterar o funcionamento do Estado, então muito provavelmente será tratado como um atirador – e, no caso de agir sozinho, será um "lone wolf" (lobo solitário); se agir sozinho e for motivado por questões políticas ou religiosas com o objectivo de sabotar ou alterar o funcionamento do Estado, será um lobo solitário que cometeu um acto de terrorismo.

Muçulmanos vs. a "brancura"

Em resumo, o que está em causa é a intenção dos atacantes e não apenas os crimes que eles cometem: mais do que ser ou não ser um terrorista, a questão é se o atacante comete actos de terrorismo. Em última análise, é isto que separa um criminoso de um terrorista.

Pouco depois do ataque no Nevada, o jornalista e comentador norte-americano Shawn King escreveu no Twitter que "só na América a 'brancura' faz com que um homem responsável pelo ataque a tiro mais mortífero da América não seja chamado terrorista". Esta afirmação provocou uma resposta do especialista da Brookings Institution Shadi Hamid, autor dos livros Islamic Exceptionalism e Rethinking Political Islam: "Nem todos os ataques a tiro são terrorismo. Temos de esperar para ver se houve motivações políticas e/ou religiosas. Ainda não há indícios disso."

Na mensagem seguinte, Shadi Hamid acrescentou mais um elemento a esta discussão, num recado para o público em geral, e também para polícias e jornalistas: "Só porque temos muita pressa para atribuir um motivo quando o atirador é muçulmano, isso não significa que devemos ter muita pressa para atribuir um motivo quando o atirador é branco."

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