"Mercado pode descartar a experiência mas terá que reflectir sobre o novo treinador"

Bernardino Pedroto, filho do mítico José Maria Pedroto, é o técnico com mais títulos conquistados em Angola. De regresso a Portugal, reforça a ideia de que a nova vaga de treinadores precisa de uma espécie de tutor, especialmente quando os resultados produzem órfãos

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Bernardino Pedroto: "O impacto da tecnologia é um factor decisivo e obriga o treinador a acompanhar atentamente esta dinâmica" Nélson Garrido/PÚBLICO

Pentacampeão angolano (três títulos no ASA e dois no Petro), vencedor de quatro supertaças e uma taça (todas no ASA), Bernardino Pedroto, filho do mítico José Maria Pedroto, é o treinador com mais títulos conquistados no reino dos Palancas. Liga que deixou há dois anos e meio por razões pessoais, depois de 13 épocas em que acumulou vivências “demasiado marcantes” para serem pura e simplesmente descartadas pela nova ordem do futebol, pouco sensível e reconhecida a quem ainda está disposto a contribuir com uma bagagem repleta de experiência.

De regresso a Portugal, onde continua a acompanhar ávida e apaixonadamente o fenómeno que abraçou aos 12 anos - então de águia ao peito -, Pedroto aproveita a inexistência de treinos e de competição para se envolver mais a fundo no processo do conhecimento, enriquecendo-se com participações em fóruns, congressos e todo o tipo de eventos em que acredita poder transmitir e partilhar experiências de uma vida com mais de meio século dedicado ao futebol.

Tudo sem perder de vista ou abdicar da profissão para que estava predestinado, carregando o apelido do mestre Pedroto, mesmo reconhecendo que se quiser ficar em Portugal terá que encontrar desafios alternativos. “Tal como Descartes, trocaria tudo o que sei por metade do que ignoro”, diz Bernardino Pedroto, citando o filósofo francês na tentativa de reforçar uma ideia que começou a germinar depois de um debate sobre as competências dos treinadores.

“O professor Jorge Araújo lançou o tema do treinador. Da importância de haver alguém que, através da experiência acumulada e de competências que só podem ser adquiridas através da prática, pudesse preparar a nova geração de técnicos para uma das mais duras realidades da carreira: a falta de apoio e solidariedade na hora das derrotas”.

"Nas derrotas ficamos órfãos"

Pedroto varia o jogo directo, apoiando-se em constatações. “Nas vitórias não faltam pais adoptivos; nas derrotas ficamos todos órfãos. A frase não é minha, mas resume na perfeição o que é esta profissão. No fundo é um paradoxo incompreensível, pois as equipas técnicas – mesmo dos clubes com menos recursos – são dotadas de todo o tipo de treinadores assistentes, preparadores e recuperadores físicos, técnicos de guarda-redes e especialistas em análise e scouting. Mas nenhuma possui alguém com competências para suprir esta lacuna fundamental. Não digo que seja possível no meu tempo, mas é urgente reflectir e discutir esta fórmula para o futuro”, reclama, sem esconder um desgosto que partilha com muitos outros colegas de ofício da mesma geração.

Jorge Jesus, Fernando Santos, Manuel Machado, Vítor Oliveira e José Couceiro, para não mencionar Jesualdo Ferreira, são honrosas excepções no actual panorama, totalmente diferente do que Pedroto enfrentou no início de carreira. “Quando comecei era preciso mover montanhas para atingir certos patamares. Hoje é tudo mais rápido e descartável. Isso deixa-me um pouco frustrado, porque sinto e sei que tenho muito para dar e que posso ser útil, embora reconheça que o mercado está fechado para os treinadores com maior maturidade”, exclama.

O mercado pode estar fechado, mas Pedroto está aberto a todo um leque de opções dentro da lógica da gestão do treino, do jogo e das emoções.

“O facto de perceber que é difícil contrariar a visão vigente dos dirigentes desportivos não implica que tenha de cruzar os braços ou voltar ao estrangeiro. Em Angola, os problemas do futebol são secundários neste momento. Por isso, ainda vai demorar até voltar a haver condições para desenvolver um trabalho sem a interferência de questões paralelas. Viajar para outras paragens não está, obviamente, fora de cogitação. Mas para quem nunca teve empresário, nem como jogador nem como treinador, torna-se um pouco surreal pensar que o meu nome e contacto possa constar da lista de um qualquer responsável de algum clube estrangeiro que de repente me eleja”, constata, sem ilusões.

“A partir daí, qualquer cargo no âmbito da direcção técnica ou desportiva terá que ser equacionado, embora sinta que toda a experiência me permita ter uma voz activa como conselheiro, especialmente necessária em cenários de instabilidade. Até porque nos momentos de maior desespero há pouca preocupação com o treinador. Os próprios dirigentes afastam-se e deixam-nos sem apoio”, prossegue.

“A área do treino, para além de ser muito abrangente, está em constante evolução. O impacto da tecnologia é um factor decisivo e obriga o treinador a acompanhar atentamente esta dinâmica, a ser mais metódico na utilização e desenvolvimento de novas ferramentas. Mas nem os técnicos mais cultos e bem preparados podem dispensar este tipo de apoio”, insiste, entrando num terreno minado.

“Obviamente, uma relação deste género teria que ser devidamente enquadrada, com regras contratualmente definidas. Para além de uma relação de extrema confiança entre o técnico e o seu próprio ‘treinador’, é fundamental garantir que o ‘conselheiro’ nunca possa ser treinador principal”, diz, para prevenir questões de faca na liga.

Nova visão para as funções técnicas

Mas enquanto reclama uma nova visão para as funções técnicas, Bernardino Pedroto vai transmitindo alguns testemunhos importantes, alicerçados nos êxitos conquistados em Angola mas também na história construída em Portugal.

“Na qualidade de vice-presidente da Associação Nacional de Treinadores de Futebol, tenho participado em cursos como director pedagógico. O levantamento da história do próprio sindicato, criado pelo meu pai - entre outros treinadores da altura -, é uma missão importante para ajudar a perceber todo o trajecto percorrido. Há sempre competências a adquirir e mesmo dispondo de mais tempo, acabo por ter que fazer algumas escolhas. Para além dos jogos a que assisto ao vivo, estou sempre atento às transmissões para observar e tirar ilações sobre as diferentes propostas tácticas e sobre jogadores”, conta, sempre em busca de uma pepita.

“O acesso à informação e ao conhecimento está ao alcance de um clique. E posso dizê-lo sem problemas pois mesmo tendo estado a mais de seis mil quilómetros de Portugal, continuava perto do que se fazia aqui e no resto do mundo. Aliás, em Angola funcionava exactamente como se estivesse no melhor clube da Europa. A exigência é a mesma. O que muda são os jogadores. Mas a partir do momento em que criamos níveis de confiança, empatia, responsabilidade e compromisso, o sucesso está mais próximo. Há uma coisa que é transversal ao fenómeno: a liderança. Essa capacidade de entender os comportamentos, de perceber que tal como os métodos de treino também os jogadores são hoje homens diferentes dos de há vinte anos é fundamental”, sublinha.

“Sem ferir valores como a verticalidade e a ética, o colectivo vem sempre em primeiro lugar. O Professor Manuel Sérgio diz-nos que o futebol não é uma actividade física, mas antes humana. E a ferramenta mais preciosa que o treinador tem à disposição é o jogador. O rendimento pode passar por muitos processos de jogo, mas há coisas que não vêm nos livros", garante: "A prática é a mãe de todas as ciências e é isso que está em jogo e é isso que o futebol teima em desperdiçar sempre que envereda pela via mais fácil, abusando da lei da oferta e da procura, não raras vezes à custa de quem procura uma oportunidade a qualquer preço.”

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