Que se passa com as cirurgias de reatribuição de sexo?

Era bom que o caminho se fizesse no SNS sem gerar mais sofrimento a quem precisa destas cirurgias

Por escrever sobre temas LGBTI, nas últimas semanas fui contactada por várias pessoas ansiosas. Recebi até mensagens de protesto dirigidas à Ordem dos Médicos, incluindo a do administrador de um grupo fechado no Facebook que se chama "Trans&Formação" e que agrega 149 pessoas trans.

A Ordem está a averiguar se há matéria para instaurar um processo disciplinar contra Décio Ferreira, o cirurgião que durante anos foi o único a fazer cirurgias de reatribuição sexual em Portugal. Partindo do depoimento de um transexual e de emails assinados pelo médico, a TVI emitiu uma reportagem a acusá-lo de manipular transexuais, de os instigar a denegrir a imagem da Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual (URGUS) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra junto da Ordem, do Ministério da Saúde e do Parlamento e de os desviar do sistema público para o privado.

“Não é ainda momento para falar, estou em contacto com os meus advogados”, disse Décio Ferreira, quando lhe liguei. “Isso são tudo coisas falsas. São baseadas em frases fora do contexto.”

As cirurgias de reatribuição de sexo estão previstas em Portugal há mais de 30 anos, mas a Ordem proibia-as. Só em 1995 alterou essa posição. Godinho de Matos começou a fazê-las em 1999 no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Quando se reformou, em 2005, Décio Ferreira assumiu a tarefa. Já não era um jovem. Atingiu a idade da reforma em 2009 sem conseguir fazer escola.

Por não haver no SNS quem continuasse aquele trabalho, o hospital propôs-lhe um contrato de 15 horas por semana a 35 euros brutos por hora. Em 2011, o médico bateu com a porta. Propunham-lhe 35 horas por semana a seis euros brutos por hora. “A legislação para aposentados tem regras rígidas e inultrapassáveis”, justificou então o presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar Lisboa Norte.

Houve pânico na comunidade trans. Havia um único médico interno interessado em aprender a fazer aquele tipo de cirurgias e faltavam-lhe dois anos para acabar a especialidade. Anunciava-se a URGUS, mas quando é que teria uma equipa pronta para operar?

Quando tudo isto aconteceu, Marcelo, que eu não conhecia e que agora me procurou, estava a terminar a sua transformação. “Fiquei desesperado”, conta. “Coimbra nunca mais me chamava. Eu chegava a ligar ao doutor Décio à noite. Ele dizia-me: ‘Tem calma.’ E eu dizia-lhe: ‘A calma está a esgotar. Qualquer dia, dou cabo de mim. Não sei como ele fez, mas operou-me no Hospital de Santa Maria.”

Décio Ferreira ainda colaborava com o SNS em casos pontuais. E já começara a operar no privado, no Hospital de Jesus.

A sua relação com a URGUS nunca foi boa. Coimbra não lhe pediu ajuda, apesar de ser um cirurgião reconhecido a nível internacional pelas suas técnicas inovadoras. O interno foi fazer formação à Bélgica. E um cirurgião sérvio veio dar formação a Coimbra. Décio Ferreira criticou essa opção de forma muito dura. Coimbra processou-o. E o Ministério Público arquivou o processo.

O velho cirurgião não era o único crítico, todavia. Diversas pessoas trans e diversas organizações queixavam-se da demora e da qualidade dos serviços prestados pela URGUS. Ocorre-me, por exemplo, a API – Acção pela Identidade, a Jano – Associação de Apoio a Pessoas com Disforia de Género e a AMPLOS – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género.

No ano passado, na sequência de queixas apresentadas à Ordem, houve uma auditoria da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, que detectou falta de lista de espera específica, falta de consulta específica, falta de coordenação de equipa, falta de tempo de bloco. Já este ano, na sequência de exposições remetidas aos grupos parlamentares, houve audição na Comissão da Saúde.

Terá Décio Ferreira manipulado toda esta gente? Ou terá, simplesmente, ido longe de mais no modo como se envolveu nos problemas dos pacientes? Cabe às entidades competentes descobrir. Parece-me, porém, evidente que, se desviou gente do público para o privado, também se esforçou para manter gente no público.

“O interesse dele não é ganhar dinheiro connosco”, entende David, que se deslocou de Coimbra para falar comigo. Como a delonga era muita, David recebeu um vale do SNS para fazer a mastectomia num hospital privado. Foi assim que conheceu Décio Ferreira, já no Hospital de Jesus. Fez todas as outras cirurgias no Hospital de Santa Maria, com ele ou o seu apoio, entre 2011 e 2013.

A abertura não é a mesma. Tão-pouco a de outros hospitais públicos. E há pessoas que recorrem a empréstimos para ir ao privado.

Letícia, que se deslocou de Lamego, cansou-se de esperar pelo SNS. “O doutor Décio disse-me em 2015 que se eu arranjasse um bloco operatório no Norte vinha operar-me gratuitamente. Tentei vários hospitais públicos e nenhum aceitou”, relata. “Em 2015, pedi um empréstimo. Em 2016, ainda não tinha resposta. Ele disse-me: ‘Vou fazer o que já fiz por outros. Pagas a parte da clínica. O meu trabalho, se o puderes pagar, pagas aos bocadinhos.’ O empréstimo não foi aprovado. Ainda não paguei.”

“Ele não é só um médico”, justifica Duarte, que se deslocou da Maia. “Ele dá a cara por nós. Ele chegou a pertencer a uma associação de apoio [a JANO]. As pessoas pedem-lhe ajuda. Há várias coisas escritas [a acusar a URGUS de más práticas e a pedir um protocolo entre o SNS e o Hospital de Jesus], mas que não partem dele, partem de nós.”

O assunto tem sido discutido em vários sítios online e offline. “Algumas pessoas ligaram-me assustadas”, revela Zélia Figueiredo, responsável pela consulta de sexologia do Hospital Magalhães Lemos, no Porto. “Não percebem nada do que está a acontecer. Só ouvem falar em problemas e querem que funcione tudo direitinho.”

Já  não é o desnorte de 2011, mas continua a haver névoa em torno de listas de espera, prazos, técnicas. Nos últimos tempos, várias pessoas acompanhadas por Zélia Figueiredo fizeram vaginoplastia em Coimbra e estão satisfeitas com o resultado. Entretanto, o Hospital de São João, no Porto, começou a fazer cirurgias de reatribuição de sexo. Era bom que o caminho se fizesse no SNS sem gerar mais sofrimento a quem precisa destas cirurgias. 

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