A moda tem mais modelos grandes, negros e trans

A definição tradicional de beleza na indústria da moda tem vindo a mudar e isso já se vê nos principais desfiles. Consumidores e designers tomaram consciência de que a falta de inclusão era gritante e a diversidade tornou-se política e passou até a ser uma forma de protesto.

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A indústria da moda está mais diversa, mais inclusiva. Mais aberta. É menos eu vs. eles, somos nós. Claro que a moda ainda tem as suas falhas. Os estilistas ainda mostram muitas vezes uma visão limitada. A indústria continua a cometer gaffes de bradar aos céus e multiplicam-se os casos de profunda insensibilidade e de sobranceira apropriação cultural (será que algum dia aquelas Kardashian vão aprender?). Mas na última década a moda abriu as portas a mais negras, mulheres plus-size, transgéneros e todos aqueles que não se enquadram na definição tradicional de beleza da indústria. E, mais importante, a moda começou a falar de diversidade de uma forma mais subtil – e a aprender com os próprios erros.

Há dois anos, Brandice Henderson, que se auto-intitula “consultora de moda”, jantou no restaurante Red Rooster, no Harlem, com cinco designers, todos eles estrelas em ascensão, louvados pelas principais revistas de moda e que já vestiam uma panóplia de mulheres famosas. Uma cena tipicamente nova-iorquina, com uma significativa excepção: todos os cinco designers eram negros. É algo digno de registo.

Há quatro anos, cinco mulheres entraram no edifício da IMG Models e impressionaram imediatamente o presidente da empresa, Ivan Bart. Uma delas destacou-se em particular. Chamava-se Ashley Graham e era plus-size. Mas como Bart disse: “Uma estrela é uma estrela.” E Graham veio a tornar-se parte do restrito clube de modelos cujo nome é bem conhecido fora do isolado universo da moda. Não é uma história de sucesso plus-size, é simplesmente um sucesso. Também é algo digno de registo.

Já este ano, a Vogue publicou incontáveis reportagens fotográficas com estrelas de Hollywood e figuras conhecidas, mas também mostrou nas suas páginas latinas de Los Angeles as irmãs da Alpha Kappa Alpha [primeira irmandade universitária de mulheres negras], modelos lésbicas e mulheres negras militares. E isto também é significativo.

Magricelas clonadas de outros tempos

A indústria da moda em Nova Iorque passou a última década em permanente convulsão devido à diversidade ou à falta dela. Os exemplos mais flagrantes verificavam-se nas passerelles: são o maior cartaz da moda, o local onde os estilistas dão asas às suas fantasias mais extravagantes e onde o público vai buscar as tendências mais glamorosas e exclusivas. E a mensagem, em meados dos anos 2000, era a de que a moda sofisticada estava reservada a pálidas adolescentes brancas.

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Em 2007, a activista Bethann Hardison organizou um encontro para debater o crescente problema da diversidade no mundo da moda (na foto com a editora de moda Tai Beauchamp e a modelo Azede Jean-Pierre) Johnny Nunez / getty images

Também nas fileiras de editores e estilistas faltava diversidade: não havia editores negros nas principais revistas de moda e a nova geração de designers que começava a captar a atenção da indústria era sobretudo branca – alguns asiáticos, mas poucos negros e latinos, e até poucas mulheres. As mulheres plus-size nem entravam na equação e a fluidez de género ainda não tinha despertado a atenção em termos estéticos.

Em 2007, a activista Bethann Hardison organizou um encontro para debater o crescente problema da diversidade no mundo da moda. Em 2013, fez um levantamento meticuloso das políticas de contratação dos designers e publicou os resultados, que mostravam uma gritante falta de inclusão, de tal maneira que Hardison não teve pejo em classificar essas políticas de “racistas”.

Hoje, a indústria está muito diferente desses tempos das magricelas clonadas, das musas de cabelo dourado e dos cabeçalhos que pareciam listas dos “mais famosos”. Há uma maior consciência de que a moda precisa de evoluir.

No ano passado, depois de o estilista Marc Jacobs ter apresentado no seu desfile Primavera/Verão modelos – muitas delas brancas – com extravagantes rastas, foi alvo da ira das redes sociais pelo seu fracasso em reconhecer que esse penteado faz parte da História da comunidade negra. Seis meses depois, o seu desfile Outono/Inverno foi uma ode ao hip-hop: a maior parte das modelos escolhidas eram de cor e a notas dadas à assistência celebravam a influência da juventude negra.

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Desfile de Marc Jacobs para colecção Outono/Inverno 2017 na semana de moda de Nova Iorque

Inclusão nas passerelles

A moda passou também por vários momentos históricos: editores negros estão hoje à frente da Vogue britânica e da Teen Vogue; Joan Smalls, nascida em Porto Rico, tornou-se a primeira modelo latina porta-voz da Estée Lauder, e a Vogue francesa fez uma capa com uma modelo transgénero.  

Há mais modelos negras nas principais passerelles e vários estilistas começaram a incluir nas colecções e na publicidade mulheres mais velhas e plus-size. A maior diversidade vê-se também na lista dos finalistas candidatos ao prémio CFDA/Vogue Fashion Fund, que inclui quatro estilistas negros e várias mulheres.

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Valentina Sampaio, primeira modelo transgénero na capa da Vogue francesa

“Acho que a moda se está a democratizar”, diz Henderson, “tanto para os consumidores como para os que querem construir uma carreira na indústria”.

No início de Setembro, os estilistas começaram a apresentar as suas colecções Primavera/Verão para 2018, o que constitui uma boa oportunidade para perceber se esta tendência é para manter. “Há um consenso sobre a questão da inclusão nas passerelles”, refere Bart. “Sinto-me confiante.”

Bart trabalha no mundo da moda há 30 anos e a primeira modelo que representou, em 1986, era uma jovem negra com ascendência russa. Quando uma empresa de joalharia estava à procura de alguém “alto, bonito e efervescente”, Bart recomendou-a. A empresa hesitou e “respondeu finalmente: ‘Não estamos à procura de pessoas negras’. Desliguei-lhes o telefone na cara”. Acabou por conseguir o trabalho para a sua cliente depois de se deslocar pessoalmente à empresa com o seu portfólio.

O evento organizado por Hardison em 2007 fez Bart reconsiderar o seu papel na indústria da moda. Como presidente de uma das maiores agências do mundo, que conta nas suas fileiras com nomes como Smalls, Kate Moss e muitas outras celebridades, decidiu que devia ajudar a abrir o caminho.

“Acho que a indústria se tornou preguiçosa”, diz Bart. “Temos de começar a dizer aos clientes o que eles precisam. E quando nos respondem que não, temos de lhes explicar o porquê de estarem errados.”

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Ashley Graham já faz campanhas de moda além das dirigidas para o mercado "plus-size"

Foi com base nessa premissa que decidiu usar Graham não apenas nas campanhas para o mercado plus-size, mas na moda feminina em geral. No site da empresa, ela e as colegas plus-size Candice Huffine e Marquita Pring não estão numa categoria à parte nem são rotuladas de plus-size. São simplesmente modelos. Graham já foi capa da Vogue americana e desfila nas passerelles ao lado de modelos com “cinturas de vespa”, além de ter a sua própria linha de lingerie.

O que a indústria da moda faz tem influência no resto da cultura, defende Bart, recordando o emocionado discurso da acriz Lupita Nyong’o, em que lembra ter encontrado a validação da sua própria beleza nas imagens da modelo sudanesa Alek Wek, contratada pela IMG há cerca de 20 anos.

“Não importa se as pessoas oferecem resistência, se mantivermos o rumo, elas mudam”, afirma peremptoriamente.

É a economia, estúpidos!

O site The Fashion Spot, que regista a diversidade nos desfiles, calcula que nas últimas estações o número de modelos não brancas rondou os 30%. Multiplicam-se as modelos com hijabs, com vitiligo ou com deficiências físicas. A questão já não é a falta de diversidade, mas como fazer com que essa diversidade pareça orgânica e não conscientemente auto-imposta.

A necessidade de mudança não é apenas uma questão moral, afirma Bart, é também uma questão económica. “A Internet veio mudar completamente o nosso mundo, porque qualquer pessoa tem acesso a tudo online. Se queremos aquele consumidor específico, temos de reflectir quem essa pessoa é.” E quando os consumidores não gostam do que vêem, é provável que façam ouvir o seu descontentamento.

Mais do que a edição impressa, o site da Vogue tem-se tornado uma experiência mais diversa e global, apelando “a mais e a mais diferentes pessoas”, diz Sally Singer, directora criativa digital. A própria leitura dá a impressão de que a revista é escrita por uma variedade de vozes que partilham um interesse comum, por oposição ao tom monocórdico da edição impressa.

“Não creio que seja uma decisão consciente”, diz Chioma Nnadi, que dirige a secção de notícias sobre moda do site. “Temos é uma equipa muito jovem e muito diversificada.”

Os cronistas digitais da Vogue não têm fronteiras e falam sobre tudo, desde o “baati”, vestido de algodão característico da Somália e favorito da modelo Halima Aden, que desfila com um hijab, à estética pessoal de pessoas que não se consideram homens nem mulheres. Se bem que a Vogue já tenha no passado abordado este tipo de assuntos, era raro que encontrasse leitores nessas mesmas comunidades, afirma Singer. “Agora, partilham esses artigos no Facebook.”

Diversidade na colecção Raf Simmons para o Outono 2017 da Calvin Klein Willy Vanderperre for Calvin Klein/ The Washington Post
Modelo da agência IMG presidida por Ivan Bart cortesia IMG Models / the Washington Post
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Diversidade na colecção Raf Simmons para o Outono 2017 da Calvin Klein Willy Vanderperre for Calvin Klein/ The Washington Post

A Internet está também a alargar o espectro dos designers. Há dez anos, Henderson fundou a Harlem’s Fashion Row, uma empresa vocacionada para ajudar estilistas multiculturais, na altura afastados das principais semanas de moda, das prateleiras das lojas mais influentes e das páginas brilhantes das revistas. Nessa altura, “era difícil encontrar três designers negros que estivessem a causar impacto e a prender a atenção da indústria”, diz Henderson. Hoje, tem na ponta da língua o nome de uma dezena. As redes sociais e o comércio electrónico deitaram abaixo barreiras, permitindo aos designers interagirem directamente com os consumidores.

Hoje em dia, um site e uma conta no Instagram é tudo o que um designer precisa para se posicionar no mercado global. Se a aceitação do público não está em Nova Iorque ou em Los Angeles, talvez esteja em Indianápolis, em Singapura ou no Qatar.

Por exemplo, um dos estilistas da Harlem’s Fashion Row encontrou a sua base de fãs no Japão. A colecção Demestik de Reuben Reuel, escolha de Ava DuVernay ou de Beyoncé, está à venda em Etsy.com. Não é a Bergdorf Goodman [loja de luxo na Quinta Avenida, em Nova Iorque], mas faz aquilo que é preciso: vender.

“Há dez anos, os estilistas só se interessavam pela arte. Não queriam ter nada que ver com a parte do negócio”, lembra Henderson. “Eu própria era diferente. Foi a economia que nos acordou.” Uma recessão tem tendência a fazer isso.

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As modelos Joan Smalls (à direita) e Cara Delevingne na colecção Stella McCartney de 2016. Smalls foi a primeira modelo latina porta-voz da Estée Lauder BENOIT TESSIER / reuters

Mostrar toda a diversidade da humanidade

Com os desfiles Primavera/Verão 2018 a decorrerem, a conversa sobre a diversidade tem-se expandido e inclui agora o papel dos imigrantes na indústria e os direitos das mulheres. A diversidade não se esgota na necessidade de ter passerelles inclusivas. Gira também à volta da identidade, tanto a pessoal como a nacional.

“Há dez anos ninguém queria ser referido como um ‘designer negro’: ‘Chamem-me só designer! Hoje, com o movimento Black Lives Matter e no clima político actual, as pessoas têm orgulho em ser designers negros, têm orgulho em dizê-lo alto e bom som no interior da indústria”, diz Henderson. “Aparecem-me cada vez mais consultores a dizer que os seus clientes querem especificamente vestir algo de um designer negro.”

A diversidade tornou-se política e assume a forma de protesto.

Em Março, a Vogue publicou um artigo sobre as mulheres do leste de Los Angeles, que coincidiu com o debate dobre o aumento das operações do ICE [Serviço de Imigração e Fronteiras dos EUA] desde o início da administração Trump. Esse artigo foi o mais partilhado do site – em plena Semana da Moda de Paris.

“Achava que estávamos no bom caminho depois dos movimentos dos direitos civis, até que apareceram nazis a marchar em Charlottesville”, diz Bart. “Esta vai ser a nossa forma de resistir: mostrarmos toda a diversidade da humanidade.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post. Tradução de António Domingos

Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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