“Precisamos da ambição francesa e da sageza alemã”

Merkel é Merkel, sabe liderar um governo. Emmanuel Macron e Jean-Claude Juncker têm uma ambição que inspira mas que, por vezes, não é realista. Portugal está no meio.

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"A atitude de Macron dá uma energia de que a Europa precisava. Com Juncker, a mesma coisa. Mas nós estamos muito perto da prudência alemã", diz Augusto Santos Silva MIGUEL MANSO

Com as eleições alemãs, mas também com os discursos de Juncker e de Macron sobre o futuro da Europa, Portugal tem de estabelecer as suas prioridades. António Costa apresentou-as em Bruges. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, faz o ponto da situação. É urgente completar a reforma da União Económica e Monetária (UEM). A defesa é uma prioridade, mas não a qualquer custo. É o momento para se começar a decidir sobre o pós-crise.

Como olha hoje para os resultados das eleições alemãs? Foram, de algum modo, uma surpresa. A chanceler saiu enfraquecida; 94 deputados da Alternativa para a Alemanha, de extrema-direita, vão entrar no Bundestag. Olhávamos para a democracia alemã como um foco de estabilidade. Verificamos que não é assim.
Há um elemento muito importante, que é a continuidade de Angela Merkel como chanceler da Alemanha. E não ignoro que a chanceler alemã dirige mesmo o Governo. Todos sabemos isso. O resultado surpreendeu-me negativamente com a expressão eleitoral atingida pela AfD. Por razões europeias, porque é uma força tipicamente antieuropeísta, e também por razões que têm que ver com a história política da Alemanha. Mas não me surpreendeu nem que a CDU tivesse perdido votos e que a chanceler tivesse de propor um governo de coligação nem que o SPD decidisse passar à oposição.

Teve outra derrota histórica.
Teve uma sangria de votos, porque a fórmula da “grande coligação” prejudicou muito o SPD, como prejudicou noutros países da Europa outros partidos de centro-esquerda. Evidentemente que o facto de serem necessários três partidos para formar uma maioria parlamentar tornará mais difícil a negociação da base programática do governo alemão. Temos de esperar.

A segunda razão de preocupação pode estar nas ideias sobre a Europa do líder dos liberais. Tudo o que ele diz é justamente aquilo que Portugal não quer ouvir em matéria de zona euro. É mais uma preocupação para o Governo?
Dito de uma forma simples, isso significa que vamos ter de convencer alguns membros do próximo governo alemão da mesma maneira que tivemos de convencer, por exemplo, o actual ministro das Finanças de que também somos contra uma “união de transferências”, contra a ideia de que cabe a uns manter a disciplina orçamental para compensar os desmandos dos outros. Pelo contrário, entendemos que a divisão entre os chamados “países da competitividade” e os chamados “países da coesão” não tem nenhum sentido hoje. O líder dos liberais vai reparar rapidamente que a posição portuguesa está muito distante dos estereótipos que já circularam.

Mesmo assim, os resultados vão levar provavelmente a um novo compasso de espera, que não estava previsto.
Justamente, isso é o que não deveríamos fazer. Para usar uma expressão do Presidente Macron, na terça-feira, este não é o tempo do adiamento, mas o tempo das decisões. Temos, aliás, um calendário que foi publicado depois do discurso sobre o estado da União de Jean-Claude Juncker, e o que está previsto é que, no dia 6 de Dezembro, a Comissão apresentará as suas propostas para completar a União Económica e Monetária (UEM). Essas propostas incluem a definição de uma linha orçamental para a zona euro e a base orçamental para o fundo de resolução único. Claro que estes prazos são indicativos. Mas já estamos numa fase em que as propostas são conhecidas, estão estudadas, há consenso sobre várias delas e é preciso avançar.

A entrada da AfD no Bundestag vem chamar a atenção para uma ideia, que também partilhou, de que a vaga do populismo estava contida. Afinal não estava.
É verdade. E por isso é que a expressão eleitoral da AfD me surpreendeu. É preocupante sem dúvida, mas é também um desafio para as lideranças europeias. Temos de continuar a olhar para os desafios europeus do ponto de vista dos cidadãos. E ter a plena consciência de que os cidadãos europeus nos pedem três coisas. Pedem liberdade, segurança e prosperidade. As respostas que damos têm de ser nesse sentido.

O que acontece na Alemanha não é bem isso. A economia cresce, não há desemprego, as pessoas vivem bem. Mesmo assim, 13% votaram na AfD. São razões de natureza identitária.
Sim. Têm mais que ver com a dimensão de segurança do que com a dimensão social. Por isso, temos de responder em todas as três vertentes de que falei.

Mas os refugiados não são uma questão de segurança.
Não. Mas são erradamente percepcionados como tal. Mas estamos a falar de 14% de votos. Há um ano o risco era muito maior.

Emmanuel Macron defendeu a necessidade de uma Europa cada vez mais integrada, sem medo de ir a contracorrente, quando o eurocepticismo ainda é bastante forte. Identifica-se com esta visão?
Com o nível de ambição, identificamo-nos. Mas também nos identificamos com o nível de ambição do discurso do presidente da Comissão. Numa frase, o discurso de Juncker pode ser resumido assim: temos de avançar todos depressa no sentido de maior integração. O discurso de Macron pode ser resumido assim: temos de avançar com entusiasmo, mas os que quiserem avançar. Quando saiu o Livro Branco dos cenários, a Teresa telefonou-me para uma primeira reacção. Eu disse-lhe que, para nós, os piores cenários eram dois, o segundo, de retrocesso para o Mercado Único, e o quarto, que seria concentrar a integração europeia só nos domínios de soberania. O primeiro também era mau, porque representava o statu quo. O quinto era o ideal: avançarmos todos ao mesmo tempo.

É impossível.
O ponto não é esse. O ponto é que se aproximou muito desse cenário. E o discurso de Macron aproximou-se muito do cenário três: das várias velocidades. Avançam os que querem, podendo os outros sempre avançar mais tarde. Estou a dizer isto porque Portugal, que entende que é preciso encontrar um ponto de equilíbrio, também entende que o discurso de Juncker e o de Macron são boas bases de trabalho.

Falta agora dizer quais são as suas reservas em relação ao que ambos significam.
Em primeiro lugar, entendemos que as questões institucionais são instrumentais e só podem ser resolvidas depois de nos entendermos sobre o que queremos. A discussão sobre se é preciso ou não um ministro das Finanças da zona euro, se é preciso um parlamento para a zona euro, se a capacidade orçamental da zona euro deve ser um orçamento próprio, todas elas são importantes, mas são subsequentes a outras. Segunda reserva: se quisermos atalhar tudo ao mesmo tempo, corremos o risco de fazer pouco. Reconhecemos que há duas grandes agendas para a União Europeia: a agenda da segurança e a agenda económica e social. Mas para que as nossas decisões possam ser produtivas em cada uma destas agendas, devemos identificar a prioridade número um. E a prioridade número um para agenda económica e social é completar a reforma da UEM e preparar desde já o próximo quadro financeiro plurianual. A prioridade número um para a agenda das funções de soberania é encontrarmos uma resposta europeia de forma que a regulação e o acolhimento das migrações sejam abordados pelos 27 e não sejam apenas vistos como um fardo dos países que são os primeiros ou os últimos destinatários. E a última reserva é que a Europa tem de evitar a lógica da fuga para a frente. O que faz sentido é irmos concluindo os dossiers que já abrimos e ir abrindo outros. Senão corremos o risco de ter as caixas todas abertas ao mesmo tempo e entrar numa espiral improdutiva.

Vê o discurso do Presidente francês como essa fuga para a frente?
Por isso é que eu remataria dizendo que, entendendo que os dois discursos são muito inspiradores, também entendo que, para avançarmos, temos de agir de forma mais focada, sabendo bem quais são as prioridades, e deixando as questões institucionais para mais tarde. Por isso é que me parece que o discurso mais equilibrado ainda é o do primeiro-ministro em Bruges.

Foi um discurso de equilíbrio entre o que Macron gostaria de fazer e o que a chanceler pode fazer.
A atitude do Presidente francês dá uma energia de que a Europa precisava. Com Juncker a mesma coisa. Mas nós não estamos longe, pelo contrário, estamos muito perto da prudência alemã. E de algumas das propostas concretas que a Alemanha já fez. Precisamos de inspiração, mas também daquela sageza e do sentido prático dos alemães.

O Presidente francês elevou a defesa a grande prioridade e escondeu as suas ideias sobre a reforma do euro no meio do último objectivo. É uma cedência à chanceler, corremos esse risco?
Não julgo que corramos. Os caracteres que Macron reservou à UEM não foram muitos, mas foram os suficientes. Referiu o essencial: que haja uma capacidade orçamental própria da zona euro, esteja ou não englobada no orçamento comunitário. A capacidade orçamental da zona euro só se consegue reforçar através de recursos próprios. O comissário alemão Günther Oettinger, responsável pelo orçamento, disse em Junho duas coisas muito claras. Preparem-se porque o “Brexit” significa menos dez mil milhões por ano de receita e aquilo que temos de fazer na área da Defesa, da segurança e nas políticas de migrações deve representar mais dez mil milhões na despesa. Só há duas maneiras de lidar com isto. Uma será profundamente errada e uma regressão inaceitável: cortar nos fundos europeus para a coesão ou na PAC, mas cortar muitíssimo. A outra é reforçar a capacidade orçamental com base em recursos próprios.

Que recursos?
Macron deu alguns exemplos, como a taxação das transacções financeiras. O relatório Monti, para além da taxação sobre os mercados de capitais, dá exemplos da chamada “fiscalidade verde”, que é um incentivo à descarbonização das economias. E, como já disse, há uma proposta já subscrita por dez países sobre a taxação das empresas de serviços tecnológicos, que prestam serviços em Espanha mas são taxadas em países europeus conhecidos pela reduzida taxação sobre os rendimentos das empresas. Onde o Presidente Macron foi menos explícito e o primeiro-ministro português mais foi na necessidade de preparar desde já o próximo quadro financeiro plurianual (pós 2020). A UEM tem de deixar de ser um instrumento de divergência para ser um instrumento de convergência. Além disso, precisa de ter condições para enfrentar o próximo choque externo.

Não sabemos o que acontecerá daqui a oito ou dez anos.
Exactamente. Os choques podem ser simétricos, atingindo o conjunto, por exemplo uma subida abrupta do preço do petróleo; ou assimétricos. Uma união monetária tem de ter instrumentos próprios para uma resposta. O Fundo Monetário Europeu (FME) é um deles. A segunda finalidade, como não há união monetária óptima numa zona económica divergente, é dar à UEM os instrumentos de política de apoio ao investimento.

O primeiro-ministro já se referiu várias vezes aos riscos do proteccionismo. A Comissão tem uma proposta pronta sobre a monitorização do investimento estrangeiro em áreas estratégicas e de alta tecnologia. É um sintoma?
Fez isso para estabelecer a posição portuguesa e para dizer que somos favoráveis aos acordos comerciais que a União está a negociar com vários países e regiões do mundo, incluindo o Mercosul. Mas quis dizer também que, sendo certo que devemos combater o dumping, incluindo o social, é preciso distinguir com clareza o que é o dumping e o que é fechar as portas ao investimento estrangeiro. Nós precisamos de investimento estrangeiro e queremos ser nós a escolhê-lo.

Como é que o Governo vê o que se está a passar na Catalunha?
É uma questão interna de Espanha. Estamos confiantes de que Espanha a resolva.

Mas, do ponto de vista europeu, a Catalunha, o “Brexit”, a Escócia indicam uma tendência para a fragmentação que está nos antípodas do projecto de integração.
Na minha modesta opinião, a Europa não pode ser Europa se não for a Europa das nações. Mas não pode ser Europa se for a Europa dos nacionalismos. Essa diferença é essencial.

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