Viver, não crescer e morrer em Gdansk

Compõe, com Gdynia e Sopot, um triângulo que se deve visitar pelo menos uma vez na vida. Danzig (hoje Gdansk), a antiga “cidade livre”, cenário da infância de Oskar e do seu inseparável tambor de lata, um dos personagens mais marcantes da literatura do século XX a que Günter Grass deu vida.

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Sousa Ribeiro

O autocarro dava um último suspiro, semelhando-se ao ruído produzido por um gato assustado e anunciando o final de um percurso que se iniciara umas horas antes, mais a sul, em Torun, onde a arquitectura gótica se expressa como em mais nenhuma outra cidade polaca. Ao longe, as luzes, sob o céu enegrecido de Gdansk, cintilavam, como um apelo e, ao mesmo tempo, um teste à minha resistência física; mas eu, como o autocarro, também emitia um suspiro que assumia contornos de um completo esgotamento, de uma total incapacidade para o mais pequeno movimento, como um autómato, nada mais desejando do que uma cama onde pudesse descansar um corpo que parecia já nem me pertencer – morto.

O sol penetra por entre as cortinas e estende-se pelo chão de madeira, pintando desenhos geométricos. Uma manhã gloriosa, cheia de sol, apresentava-se aos meus olhos, uma outra espécie de apelo, mais convidativo, a um corpo que me fora devolvido pela noite silenciosa e retemperadora – vivo e sem dificuldade para me arrastar para o coração da cidade, ao encontro de uma esplanada onde um café se encarregaria de me transmitir ainda mais energia.

- Conheces o Umesh?

Assim, de repente, ainda um pouco sonolento, tive dificuldade em reagir, em construir um equilíbrio entre o nome e a cara, em situar ambos num espaço geográfico.

- Julgo que era um dos proprietários, ou qualquer coisa assim, do Kamasutra, um bar no Bairro Alto, em Lisboa.

Uma expressão de surpresa deve ter-se pintado no meu rosto, seguida de uma outra, mais ausente e distante, das noites em que me cruzara com Umesh, com o Ricardo e a Joana, todos sorridentes, servindo os clientes que, uma vez com o copo na mão, se plantavam no exterior, brindando pela noite dentro ou pela noite fora.

Numa dessas noites, provavelmente a horas tardias, Ewa Serwicka pode ter ocupado um palmo de terreno ainda disponível ao meu lado – mas seria uma grande coincidência se os nossos passos ou os nossos olhares se tivessem cruzado em Lisboa como agora, de forma espontânea, se cruzam em Gdansk.

- Gosto, realmente, desta cidade mas sinto dificuldade em encaixar as palavras de modo a que façam sentido e, em simultâneo, justiça à beleza de Gdansk.

Olhava ao meu redor, como para lhe dar tempo, para se descontrair e formar um puzzle sem se sentir observada. Mas, pelo canto do olho, perscrutava Ewa Serwicka fitando o tampo da mesa esverdeada, como se nela procurasse uma definição, a história da cidade, esse encantamento que, a julgar pela primeira frase, Gdansk parecia produzir no mais profundo do seu ser. 

Quem explorasse o meu cérebro àquela hora da manhã, sob um sol resplandecente, inundando com os seus raios tudo à sua volta como a desembocadura de um rio após dias e noites de temporal, seguramente que descobriria um caminho sem curvas para a história que me absorvia, tão rica em detalhes, a de Oskar, com o seu inseparável tambor de lata, numa das cenas do livro homónimo e considerado um dos mais marcantes da literatura do século XX (em Portugal editado pela D. Quixote) de Günter Grass, o escritor (1927-2015) nascido em Gdansk.

Ewa Serwicka procura ainda, sentada na esplanada, reunir as palavras certas para definir Gdansk ou o sentimento que tem por ela, diria mesmo que com a paciência de uma dona de casa, num dia de folga, perante as prateleiras de um supermercado.

Milenária

Ao fim de alguns minutos, decide-se, mas de uma forma poupada:

- É uma cidade com uma história com mais de mil anos, complexa e, ao mesmo tempo, fascinante, observa Ewa Serwicka.

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Peter Andrews/Reuters

Gdansk, a antiga “cidade livre” de Danzig de Günter Grass, Prémio Nobel da Literatura em 1999 (precisamente 40 anos após a publicação de O Tambor), tem, de facto, uma história milenar, a atestar na primeira referência documental que se conhece, datando do ano 997 e com uma toponímia que já se encaminhava para aquela com que é conhecida nos dias de hoje – Gyddanyzc.

Conta-se que nesse ano, por altura da Páscoa, apareceu na cidade um bispo da Boémia, o missionário Wojciech, conhecido também pelo nome de Adalbert e com uma existência curta (foi morto pelos pagãos prussianos). Conforme descreve o monge beneditino Jan Canapariusz, o santo, a despeito de uma vida efémera, baptizou um grande número de cidadãos que se converteram ao cristianismo.

Beneficiando da sua posição estratégica e das muitas possibilidades que proporcionava aos comerciantes que ansiavam por uma vida próspera, Gdansk sempre foi, pelo menos desde a Idade Média, uma cidade apelativa. Antiga colónia de pescadores, conheceu um desenvolvimento rápido, atraindo, com a mesma celeridade, diferentes ocupantes, como a dinastia eslava dos duques da Pomerânia, os Cavaleiros Teutónicos e, já no início da segunda metade do século XV, os reis da Polónia, por essa época vivendo um tempo de esplendor.

Como consequência, Gdansk tornou-se o porto mais rico do Báltico, uma cidade que acolhia ricos mercadores suecos, holandeses, escoceses e italianos, bem como artistas e cientistas, concorrendo todos para tornar a urbe num exemplo de cosmopolitismo. Toda esta harmonia começou a sofrer fortes abalos em finais do século XVIII e nos primeiros anos do século seguinte: primeiro, em 1793, quando foi conquistada por Frederico Guilherme II da Prússia e rebaptizada Dantzig; em 1807, quando foi tomada por Napoleão; finalmente, em 1815, quando voltou para as mãos dos prussianos, que instalaram em Gdansk uma população maioritariamente alemã e rapidamente abraçaram o projecto de a industrializar.

A história da cidade conhece ainda, até aos dias de hoje, mais três capítulos importantes, no final da I Guerra Mundial, altura em que obteve o estatuto de “cidade livre”, na II Guerra Mundial, período em que foi totalmente destruída por alemães e russos e, por fim, nos anos turbulentos de 1970 e 1980, marcados por greves que conduziram à revolta da população e à queda do regime comunista em 1989, com o apoio do sindicato dos metalúrgicos Solidariedade, liderado por Lech Walesa.

A herança do âmbar

Ewa Serwicka, num tempo estudante Erasmus em Portugal e autora, actualmente, de um blogue de viagens, parece ter mais facilidade em escrever do que em deixar assomar aos lábios algumas palavras sobre a cidade que nos acolhe ao início de uma manhã cheia de sol, sem uma única nuvem.

- Se me pedissem para nomear três das mais belas e interessantes cidades polacas, Gdansk seria, seguramente, uma delas. Tem uma atmosfera agradável e amigável, bem como uma arquitectura que impressiona à primeira vista.

Mesmo ao nosso lado, recortando-se contra um céu de um azul cobalto e encimada, a 82 metros de altura, por uma réplica em ouro do rei Segismundo II Augusto que decora o pináculo, ergue-se a Ratusz Glównego Miasta, o edifício camarário que domina a ulitza Dluga. Construída no século XIV para servir de sede às autoridades políticas, acolheu no seu interior diversos reis polacos e foi praticamente destruída durante a II Guerra Mundial (mas restaurada de uma forma sublime).

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Roberta Cucchiaro/Reuters

Dois leões guardam o pórtico de entrada do século XVIII antes de se avistar uma elaborada escadaria que conduz à imponente Sala Czerwona, a sala vermelha (devido à cor da mobília), utilizada pelo edil nos meses de Verão e na qual se destacam 25 pinturas que rodeiam uma principal e que retrata a Glorificação da Unidade de Gdansk. A Ratusz Glównego, com um interior que convida à permanente contemplação dos tectos com as suas pinturas, de frescos coloridos, de mobiliário e esculturas, abriga também o museu de história da cidade, exibindo fotografias da velha Gdansk e dos danos provocados durante a II Guerra Mundial.

Da torre, num dia como este, tão banhado de sol, a panorâmica sobre a cidade é soberba e o momento afigura-se ainda mais majestoso quando se escutam os 37 sinos (inaugurados na passagem de ano de 2000) que enfeitam o campanário.

Se, por exemplo, em Wroclaw, uma das mais interessantes cidades polacas e capital europeia da cultura em 2016, me divertira, uns dias antes, a tentar encontrar estátuas de anões de bronze espalhadas pelas ruas, em Gdansk, o jogo consiste em localizar as inscrições em latim nos frisos das portas e em alguns dos seus monumentos mais imponentes.

As primeiras descobrem-se na Brama Wyzynna, a Porta Alta, construída no século XVI - “Justiça e piedade são os alicerces de todos os estados” - e, uma vez franqueado o umbral, surge a Wyzynna Lujuria, destacando-se dois edifícios ligados por dois muros, um a Torre das Torturas (Katownia), o outro, a Torre da Prisão (Wieza Wiezienna), utilizada como campo de concentração para mulheres polacas.

Com a construção da Brama Wyzynna, onde os reis, por tradição, iniciavam o seu desfile, em parada, a Wyzynna Lujuria perdeu a sua importância defensiva. Ao olhar para ela, lembrei-me de Ewa  Serwicka.

- Na minha cabeça, sempre associei Gdansk ao âmbar, a uma bonita pedra preciosa, de um amarelo escuro ou laranja, proveniente do Báltico. Gdansk pode sentir-se orgulhosa por organizar a maior feira do mundo de âmbar.

Mesmo ao meu lado, estava o museu do âmbar, a pedra boa, a pedra santa, a pedra inspiradora, o ouro do Báltico, tão associado, desde tempos imemoriais, à história de Gdansk.

Continuo a minha errância, desejando pôr-me, pelo menos por um dia, na pele de um rei percorrendo o caminho real.

“Os pequenos estados crescem na concórdia, os grandes caem na discórdia” - pode ler-se na Zlota Brama, a Porta Dourada, com as suas oito estátuas que representam a Paz, a Liberdade, a Riqueza, a Glória, a Prudência, a Piedade, a Justiça e a Concórdia de que fala a inscrição.

Sigo ao longo da ulitza Dluga, detendo-me aqui e acolá, até desaguar na Dlugi Targ: na Dom Uphagena, para admirar mobiliário ornamentado, na fonte de Neptuno, onde os turistas e os locais se concentram, na Casa Dourada, com a sua bonita e rica fachada, no museu Dwór Artusa, a corte do rei Artur, onde os mercadores e a elite da cidade marcavam encontro, atraídos pelas lendas do súbdito. Passo a renascentista Brama Zielona, a Porta Verde, que dá acesso ao porto e caminho por uma das margens do Motlawa por breves instantes, até fazer uma incursão pela porta de Santa Maria, onde habita o museu arqueológico, com crânios e amostras de âmbar e uma vista imperdível, desde a torre adjacente, sobre o rio.

Pitoresca

Subo a ulitza Mariacka, pousando olhares demorados nas suas casas do século XVII, em tempos de antanho residências da burguesia e nos dias de hoje ocupadas, pelo menos nos pisos térreos, por lojas que vendem âmbar, galerias de arte e por restaurantes e bares - mas ainda assim uma das ruas mais pitorescas de Gdansk, conservando a antiga atmosfera da cidade próspera do século XVII. Quando a avistei, voltei a recordar-me de Ewa Serwicka, nessa manhã, já em jeito de despedida:

- Não te esqueças de visitar a igreja de Santa Maria, impressionante e a maior igreja medieval do mundo construída em tijolo.

Não cheguei a confirmar o estatuto mas concordei, sem grande dificuldade, com o adjectivo utilizado pela jovem polaca. Levantada no século XIV, semelha-se a um gigante e mais ainda quando se observam as pequenas figuras que despontam, ao meio-dia, do pequeno relógio astronómico, decorado com signos do Zodíaco.

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Sousa Ribeiro

De volta à margem do Motlawa, como um espelho onde se reflectem construções magnificentes, fito com mais atenção a Zuraw Gdanski, a grua de Gdansk, do século XV e a maior do género na Europa da Idade Média, com capacidade para aguentar cargas superiores a dois mil quilos.

As irmãs

Apanho um comboio regional que me deixa, em poucos minutos, em Gdynia, uma cidade jovem e com uma atmosfera portuária, onde visito dois navios-museu, o Blyskawica, que serviu as forças navais aliadas durante a II Guerra Mundial, e a fragata Dar Pomorza, construída em Hamburgo em 1909.

Fazendo o percurso inverso, até Gdansk, uma vez mais de comboio, saio em Sopot, muito mais atractiva, com uma rua pedonal agradável (na qual se destaca a Krzywy Domek, a casa torta) e uma bonita praia que já seduzia um grande número de turistas no século XIX.

- Outra vez?

Um grupo de senhoras, todas espanholas, cruzava-se no meu caminho pela terceira vez, já depois de as ter encontrado, uns dias antes, em Wroclaw e em Poznan.

Ao fundo, avistava aquele que é o maior cais da Polónia, com mais de 500 metros de comprimento, gente caminhando para cá e para lá, uma estrutura que serviu de cenário a uma conversa mais que improvável.

- Portugal? Que lindo. Percorri a costa vicentina toda e jantei em Lisboa num restaurante indiano, num bairro com grande vida nocturna. Não me recordo do nome.

Pela discrição de Sylwia Saferna só podia ser o Calcutá, a dois passos do bar que Ewa Serwicka costumava frequentar nos seus tempos de estudante.

Caminhava agora para a estação ferroviária, mais um edifício imponente de Gdansk, à distância projectava-se o terminal onde o autocarro dera, uns dias antes, o último suspiro antes de me libertar para as garras da cidade. Pensava num corpo morto, ausente, e num outro, vivo, na manhã seguinte. A história de Gdansk não era assim tão distinta, com a diferença de que, tendo uma vida mais longa, mais cedo ou mais tarde, acabava por exorcizar os fantasmas do passado, ressurgindo a cada passo plena de energia.

Pensava mais ainda em Oskar, no tambor que segurava com a força com que uma lapa se agarra à rocha desde que lhe fora oferecido quando tinha apenas três anos de idade, um anão capaz de quebrar o vidro de uma montra com um grito, de se tornar chefe de um gangue que nada compra e tudo rouba das lojas, um anão entre muitos outros, num espectáculo circense, na linha da frente de uma guerra que Gdansk conheceu como poucas outras cidades. Afinal, a história de Oskar é a história que viaja (não unicamente) entre os anos que cimentaram o nazismo e o período vivido durante a II Guerra Mundial. E esses, a memória de Gdansk nunca apagará.

Mas a vida segue.

Let's Danzig. Let's Gdansk.

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