Nelo: "Nunca disse a ninguém que não gosto de um país"

A nova fábrica de caiaques de Nelo tem 16 mil metros quadrados e 110 funcionários. E o seu passaporte tem "uns 60/70" países visitados.

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A primeira fábrica não tinha mais de 50 metros quadrados. A segunda, inaugurada há mais de dez anos, era uma nave de 5000 metros quadrados. Há um par de semanas, em Vila do Conde, Nelo cortou a fita a uma fábrica com o seu nome que parece um hangar de aviões — com 16 mil metros quadrados, 110 funcionários e planos de expansão.

Nos últimos Jogos Olímpicos, no Rio de Janeiro, só um caiaque sem a marca Nelo é que ganhou uma medalha. "E foi de bronze", sublinha Nelo, de Manuel Ramos, que pede autorização à Fugas para fazer a visita guiada à linha de montagem Nelo montado numa bicicleta de passeio. "E nos últimos campeonatos do mundo ninguém ganhou medalhas para além de nós", reforça o primeiro campeão nacional depois de fundada a Federação de Canoagem no final dos anos 70, o atleta que em 1978 começou a fabricar os seus caiaques porque o mercado português não lhe dava resposta.

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Nelson Garrido

Nelo nunca teve outro ofício ("Nunca trabalhei para ninguém. Acho que quando era miúdo fiz uma semana de vindimas", sorri) e sabe que o avanço das embarcações que produz em relação à concorrência é "demolidor". "Manter essa hegemonia é muito complicado". Os truques estão todos à vista. A qualidade da matéria-prima, a personalização dos caiaques à medida dos atletas, a assistência às equipas durante as competições, o investimento na investigação... Todos menos um: as viagens de Nelo, 58 anos e "uns 60/70" países visitados, aquilo a que o próprio chama de "um bom investimento". "Trabalho forte e feio durante três meses. Depois tenho que fazer férias".

É como uma prescrição médica: no mínimo quatro períodos de férias por ano ("mais aquelas pequeninas"). "Nesses momentos em que estou relaxado é que me surgem as ideias para vários projectos. Rapidamente recupero o dinheiro que vou gastar nas férias", admite, Nelo, que desde muito cedo incutiu esse vício nos filhos. "O meu filho com 15 anos conhece uns cinquenta e tal países... e falta-lhe conhecer a Europa". Ao empresário interessa-lhe sobretudo "conhecer novas realidades". E interessa-lhe que os seus filhos saibam que "o mais importante não é o que está à volta do seu próprio umbigo". "As viagens são importantes para a sua formação, para entenderem melhor as pessoas".

Nelo deixou Angola com 15 anos. E aos 18 partiu num Interrail "sem dinheiro e sem destino". Dormiu nos comboios ("a opção mais barata") e, apesar de os planos iniciais apontarem para o Norte da Europa, acabou por ficar mais tempo na Alemanha, "o país que menos queria visitar e aquele que mais curiosidade despertou depois de lá estar". Lição. "Nem sempre aquilo que procuras é o mais interessante", resume Nelo, cinco continentes explorados ("a fatia do mundo que menos conheço é a América do Sul") e que se define como "uma pessoa muito curiosa", alguém que "procura a diversidade", um viajante que tanto sobrevoa a barreira de coral na Austrália de helicóptero como mergulha de cabeça num mercado do Uganda, que tanto come "formigas com asas" em África como os pratos mais elaborados do elBulli.

"Como tudo aquilo que vejo que as pessoas comem. Faço muitas viagens pela comida. Quando estou num país só como a comida desse país e só bebo as bebidas desse país. E nunca tenho saudades da comida e da bebida portuguesas de que eu gosto muito. Provo tudo aquilo que o país pode dar", diz Nelo, que assume "viajar para comer, para procurar os melhores restaurantes do mundo e para descobrir o que os melhores chefs têm para oferecer". "A única pessoa que não sabe cozinhar sou eu, nem um ovo estrelado. Andei vários anos a tentar e não consigo. Desisti quando o meu filho, sem nunca ter ido para a cozinha, aos dez anos fez um bife que ficou fantástico. É mesmo falta de jeito".

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A sua infindável curiosidade define a sua vontade de "continuar a viajar de mente aberta". "Nunca pensei no quão importante era viajar, fui descobrindo isso", diz hoje em dia. "Quanto mais encontrar a diferença, mais o destino me motiva", aponta Nelo, "deslumbrado pela Ásia" ("um continente fantástico, um outro mundo, uma terra diferente, demasiado grande para se conhecer") e ansioso por viver todos os cantos que lhe falta viver. "Conhecer um país não é criticá-lo, é vivê-lo como ele existe. Nunca disse a ninguém que não gosto de um determinado país. Gosto de todos os países, independentemente da realidade que vou conhecer, mesmo quando ela é dura ou desagradável. Isso marca-me".

Viajar é, no seu entender, ir ao mercado de uma cidade, ao "coração da cidade, ao sítio onde estão as pessoas, os cheiros e os produtos da terra". O dono do império Nelo, o mesmo que passeia de bicicleta através da linha de montagem de caiaques habituados a ganhar medalhas de ouro, podia passar a vida numa redoma de luxo. Mas "isso não é viajar. A grande vantagem de não ficar num hotel de cinco estrelas é não passar ao lado da realidade de um país", sublinha o explorador Nelo, que consegue juntar as suas obrigações profissionais ao prazer de visitar muitos países. "Durante uma fase profissional ia visitar agentes ao Japão, à Coreia, à Colômbia... Ficava com eles uns dias a discutir os interesses comuns e ficava a conhecer a realidade do país. Agora as coisas são mais exigentes e não temos muito tempo para tanto. Agora conheço o aeroporto, o hotel e a pista", lamenta.

Qual era o país onde eu viveria? "Austrália, por tudo o que representa: país enorme e lindíssimo, com pouca gente, muito bem organizado socialmente, com muito cuidado na preservação da natureza e com uma ligação ao mar brutal". Não viaja de canoa — porque com as canoas trabalha "forte e feio" —, mas já atravessou o Atlântico num veleiro. Não tinha a inscrição Nelo. Talvez um dia.

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