E o melhor vinho do mundo é... português, claro

O que este caso dos melhores vinhos do mundo nos mostra é uma relação cada vez mais promíscua entre agências de comunicação e jornalistas.

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Carla Carvalho Tomás

Nem de propósito: no penúltimo Elogio do vinho, intitulado “A mentira tem sempre perna curta”, escrevi que a a maioria dos concursos de vinhos é uma farsa e a exploração e divulgação jornalística dos prémios uma farsa ainda maior”. “É de arrepiar os cabelos quando se ouve uma televisão ou um jornal anunciar que ‘o melhor vinho branco do mundo’ ou o ‘melhor vinho tinto do mundo’, ou ‘o melhor rosé do mundo’, ou ‘o melhor moscatel do mundo’ é português, só porque um determinado vinho português foi considerado o melhor de um determinado concurso. Dias depois, voltámos ao mesmo nacionalismo bacoco. “Pela primeira vez o melhor vinho branco do mundo é português”, anunciava em título a Dinheiro Vivo, publicação online de economia que é vendida ao fim-de-semana como suplemento do JN e do DN. Num fenómeno mimético também muito português, outras publicações de referência e algumas televisões foram atrás da notícia e anunciaram o mesmo, com entrevistas na adega ao produtor do vinho, a Ervideira, do Alentejo. 

Vale a pena recordar o que escreveu a Dinheiro Vivo: “Pela primeira vez um vinho branco português arrebatou a medalha de ouro num concurso onde estavam à prova os 16 melhores vinhos brancos do mundo. É o Conde D’Ervideira Reserva Branco e o director geral da adega, Duarte Leal da Costa, ainda com dificuldade, apesar de ser o néctar mais premiado da adega, diz: ‘É o melhor do mundo’. O Conde D’Ervideira foi eleito o melhor do mundo no concurso mais exigente para vinhos brancos, o Mundus Vini, na Alemanha, onde todos os grandes produtores colocam à prova os seus produtos”. Duarte Leal da Costa, um incansável marketeer, sabe, melhor do que ninguém, que é tudo mentira: nem o dito vinho é o melhor do mundo, nem o Mundus Vini é o concurso mais exigente para vinhos brancos, nem todos os grandes produtores concorrem. 

Como se chega até aqui? Ignorância por parte de quem escreveu a notícia seria a resposta mais fácil e óbvia. E não diríamos mentira nenhuma. Mas o problema é um pouco mais complexo. Por trás deste tipo de notícias está sempre uma agência de comunicação. O que este caso dos melhores vinhos do mundo nos mostra é uma relação cada vez mais promíscua entre agências de comunicação – que se têm vindo a reproduzir como cogumelos- e jornalistas. Promíscua mais por culpa dos jornalistas do que pelas agências de comunicação. Por preguiça, associada também a muita ignorância, amizade e receio de perder uma fonte de convites para apresentações e viagens, muitos jornalistas limitam-se a reproduzir o que as agências de comunicação lhes enviam — e o que estas lhes enviam não são notícias, são manifestos de publicidade e de propagando a um determinado produto ou cliente. 

No caso do vinho da Ervideira, todos os jornalistas ligados ao vinho devem ter recebido o mesmo press release da agência de comunicação que trabalha com aquele produtor alentejano a anunciar o tal prémio do melhor do mundo. No nosso caso, vinha acoplado com uma sugestão de entrevista ao produtor. Declinámos educadamente, respondendo que há milhares de vinhos portugueses medalhados todos os anos (no referido concurso Mundus Vini foram cerca de 300 os vinhos portugueses premiados).

Desgraçadamente, as agências de comunicação têm vindo a ocupar parte do espaço que competia aos jornalistas, por demissão destes. Mas o problema não é exclusivo do sector dos vinhos. É transversal a todos os domínios e, em áreas como a economia, os seus efeitos colaterais são, por vezes, muito mais devastadores. No caso dos vinhos, servem apenas para o produtor agenciado vender mais umas paletes de garrafas e reforçar a sua notoriedade. Lembram-se do Syrah da Casa Ermelinda Freitas? Aconteceu em 2008 e foi abertura de telejornal. Até o Expresso foi na onda, ao escrever: “ O Syrah 2005 da Casa Ermelinda foi considerado o melhor tinto do mundo, num concurso internacional que teve lugar em Paris, França”. O vinho esgotou num ápice, na colheita seguinte o preço disparou e o nome Ermelinda Freitas tornou-se popular para os portugueses. 

Nove anos depois, continuamos na mesma, o que abona muito pouco a favor do jornalismo. Infelizmente, a reprodução acrítica dos press releases é apenas uma parte do problema — e, neste caso, nem sequer podemos invocar os baixos salários que se pagam hoje aos jornalistas. Mais preocupantes são as dificuldades financeiras de todo o sector, que, no caso dos vinhos, deixam os jornalistas cada vez mais dependentes dos convites e dos humores dos produtores. Se nos convidam para um fim-de-semana de provas numa quinta fantástica, com refeições sumptuosas, seremos capazes de ser imparciais na avaliação dos vinhos? Por mais rigorosos que possamos ser, não tenderemos a exagerar as suas virtudes e a atenuar os seus defeitos? 

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