Este domingo, os diplomatas não vão votar. Porque não podem

Os diplomatas são abstencionistas à força. Há anos que lutam para eliminar o vazio legal criado em 1976 que os impede de votar de forma plena. Depois de caminhos tortos e alguma criatividade, está aberta a porta para votarem nas legislativas e nas presidenciais. Mas as autárquicas continuam de fora

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O problema é tão pequeno em escala que não é notícia. Em politiquês chama-se “exercício do direito de voto antecipado por eleitores deslocados no estrangeiro” o que, na vida real, traduz-se na bizarra dificuldade — em certos casos, impossibilidade — de os diplomatas poderem votar.

Este domingo, só os diplomatas que tiverem pedido autorização para deixar o posto e vir a Portugal, pagando a viagem do seu bolso, é que poderão exercer o direito de voto. O actual embaixador português em Madrid, casado com a candidata do PSD à Câmara Municipal de Lisboa, pode meter-se no carro e vir votar. Além de uma motivação forte, tem apenas seis horas de estrada ou uma de avião à sua frente. Faz-se bem. Mas os seus colegas em Díli ou em Nova Iorque são muito provavelmente dois dos abstencionistas forçados destas autárquicas.

É verdade que não se perdem muitos votos e que este problema parece uma gota de água quando o comparamos com os emigrantes, cujo movimento "Também somos portugueses" tem feito um lobby consistente junto da Assembleia da República (pedem o recenseamento eleitoral automático quando o emigrante actualiza o cartão de cidadão com a nova morada do estrangeiro; o recenseamento digital ou via postal, em vez de presencial, e o voto electrónico).

Mas é mesmo assim uma "gota" de milhares de portugueses (o vazio actual abrange os diplomatas e todos os funcionários das embaixadas, mais as suas famílias, maridos, mulheres e filhos entre os 18 e os 25 anos) que desde 1976 assistem ao arrastar de um verdadeiro processo kafkiano, lamento o cliché.

Em 2010, houve um passo em frente importante, quando o direito ao voto antecipado foi alargado e passou a abranger novos "grupos" de portugueses temporariamente ausentes no estrangeiro. Mas só em 2014 é que a Comissão Nacional de Eleições (CNE) clarificou, em nota oficial, que os diplomatas (e os conselheiros, adidos técnicos ou delegados do AICEP) podem votar antecipadamente nas legislativas, presidenciais e europeias. Nessa nota, a própria CNE esclarece que "não se consideram abrangidos os membros dos agregados familiares dos diplomatas e funcionários equiparados" e sugere que a "inexistência desta previsão legal" merece, "no futuro, a adequada atenção do legislador, por ser de inteira justiça".

Foi de facto isso que aconteceu. Mas a história, já sabemos, não acaba bem. Em Abril, o governo socialista de António Costa aprovou em Conselho de Ministros uma proposta de lei para "facilitar a aproximação entre os eleitores e os eleitos e alargar e facilitar o exercício do direito de voto”. A proposta dá seguimento à prioridade oficial de “fortalecer, simplificar e digitalizar a Administração através do Programa SIMPLEX+" e prevê o voto antecipado para todos os que estejam deslocados no estrangeiro em exercício de funções públicas e os seus familiares. É uma "evolução muito positiva", diz o gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros. O entusiasmo justifica-se. A proposta de lei prevê alargar a possibilidade do direito de voto para a Assembleia da República, o Parlamento Europeu e Belém.

Mas salta à vista uma ausência: as autárquicas.

Esta será a 22.ª alteração à Lei Eleitoral do Presidente da República (1976) e a 16.ª alteração à Lei Eleitoral da Assembleia da República (1979). Mas ainda não será desta. Já há mais de dez profissões para quem se encontrou regimes de excepção de voto antecipado nas eleições locais, dos militares aos bombeiros, passando pelos serviços secretos. Um folheto da CNE enumera-os. Os diplomatas continuam de fora. Oficialmente, o MNE não está incomodado com a omissão. Diz que introduzir o voto no estrangeiro para as autárquicas teria uma "complexidade acrescida" e que o facto de ter ficado de fora da revisão não criou "dificuldades" internas.

Pragmáticos, os diplomatas parecem não querer irritar ninguém para ver se, pelo menos, avança o que está em cima da mesa. De qualquer modo, nada acontecerá antes de 2018. Depois de um primeiro debate e vários pareceres, seis meses depois a proposta de Costa está agora na comissão da Transparência.

No MNE, ainda se repete a lenda de que a lei eleitoral de 1976 se "esqueceu" dos diplomatas por acreditar que eram todos de direita. É óbvio que há muitos diplomatas de esquerda e que a razão para tão absurdo anacronismo é outra. O preço a pagar por esta "complexidade acrescida" é simples. O Estado envia os diplomatas para o estrangeiro e rouba-lhes um pouco de cidadania.

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