Dia de reflexão: quando é que isto acaba?

Não será um atestado de menoridade mental e de paternalismo estatal, que obriga o país a um pesaroso silêncio de 24 horas e a comunicação social a um penoso exercício de auto-censura?

Durante a campanha foi discutida a possibilidade de se proibirem os jogos de futebol em dia de eleições, para não perturbar os cidadãos mais impressionáveis. Muito boa gente divertiu-se a gozar com tal ideia, por entender que ela infantilizava maiores de idade dotados de meninges e livre-arbítrio. É um facto. Mas pergunto: e esta coisa patética chamada “dia de reflexão”? Não será ela um atestado de menoridade mental e de paternalismo estatal, que obriga o país a um pesaroso silêncio de 24 horas e a comunicação social a um penoso exercício de auto-censura?

A proibição de falar sobre política em véspera de eleições é muito mais grave do que impedir pontapés na bola no dia do voto, e vejo pouca gente a indignar-se com isso. Os semanários que saem ao sábado têm de sair à sexta-feira. Os programas de debate político estão condenados a patrulhar as palavras. Os telejornais dedicam-se à política internacional e aos passarinhos. E tudo isto para quê? Para que o cidadão eleitor possa sentar o rabo numa rocha granítica e repousar o queixo no punho, como O Pensador de Rodin, aguardando a iluminação celeste. Após 24 horas de recolhimento, ele está enfim em condições de oferecer à República a sabedoria de um voto profundamente meditado. Para um estado laico, este dia de reflexão cheira demasiado a incenso e a reclusão monástica. A política não é uma matéria do foro íntimo. Os assuntos da polis são para serem debatidos na praça pública. As reflexões fazem-se em voz alta.

Mas, em bom rigor, o problema não está propriamente na lei, que é bem mais modesta do que as consequências práticas que dela advieram. De facto, as várias leis eleitorais proíbem apenas a propaganda em véspera de eleições. Sublinhe-se a palavra “propaganda”. Que haja limites temporais à publicação de sondagens, para evitar tentativas de manipulação de última hora, eu até consigo perceber. Que se queira acabar com o frenesim da campanha eleitoral um dia antes de abrirem as urnas, já acho bastante desnecessário, mas ainda aceito. Agora, que os jornais, as televisões e as redes sociais estejam abrangidas por esta lei da rolha parece-me absolutamente inadmissível. É uma censura limitada a 24 horas, mas é uma censura, ainda assim.

Como é que passámos da proibição da propaganda à obrigatoriedade do silêncio? O busílis reside no facto de a Comissão Nacional de Eleições (CNE), no já distante ano de 1982, ter entendido que a proibição de propaganda eleitoral significava a impossibilidade de transmitir “notícias, reportagens ou entrevistas que de qualquer modo possam ser entendidas como favorecendo ou prejudicando um concorrente às eleições, em detrimento ou vantagem de outro”. Esta formulação é tão abrangente que dá para tudo – em última análise, uma simples notícia de jornal ou um artigo de opinião podem ser considerados propaganda eleitoral.

Em 2014, a CNE foi ainda mais longe, pronunciando-se especificamente sobre o Facebook: “tratando-se quer de cronologias pessoais quer de páginas do Facebook, elas não podem registar qualquer acção de propaganda praticada após as 00h00 da véspera da eleição”, a não ser em posts reservados a “amigos” ou “amigos dos amigos”. É fácil de ver que este nível de picuinhice é não só caricato e censório, como é impraticável no mundo cada vez mais complexo das redes sociais. A CNE anda há décadas a ser mais papista do que o Papa. Passaram-se 42 anos desde o 25 de Abril de 1974. Já nos tratavam como adultos, não?

 

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