Alemanha, Europa: ano zero

Estamos perante um momento decisivoa – se a União não for capaz de se democratizar e de assumir a sua essência de justiça social, a derrota do nacionalismo em França não terá sido mais do que um breve e ilusório interregno.

A Europa está no seu ano zero, na encruzilhada entre a gravidade da crise da democracia europeia, confirmada pelas eleições alemãs, e as propostas de Emmanuel Macron para a refundação da União.

Com a vitória de Macron em França, pensou-se cedo demais que a crise europeia era já uma coisa do passado. As eleições alemãs são um aviso de que o problema europeu está longe de estar resolvido e que ninguém, nem mesmo a Alemanha, escapa ao mal estar dos cidadãos com os partidos que governaram as democracias europeias desde o fim da II Guerra Mundial. A Alemanha é também a prova de que a crise, muito mais do que económica, é política: é uma crise da democracia europeia, que atinge particularmente os partidos socialistas e social-democratas.

Na Alemanha emergiu a extrema-direita. A Alternativa para a Alemanha (AfD) não é uma reedição do velho partido nazi, em relação ao qual os alemães estarão vacinados, mas sim uma nova extrema-direita, nacionalista, xenófoba, anti-islâmica e anti-imigrantes – a mesma corrente que já está no poder na Polónia e na Hungria. Não é por acaso que a AfD tem a maioria do seu apoio na antiga Alemanha de Leste, onde há uma menor assunção de responsabilidade pelos crimes cometidos pelo regime nazi e, pelo contrário, persiste uma dupla vitimização – vítimas do nazismo e do sovietismo. Ao contrário do que sucedeu nos Länder da Alemanha Ocidental, no Leste, tal como na Polónia e na Hungria, o nacionalismo não foi deslegitimado.

A CDU-CSU tem, por ter assumido a retórica do “excecionalismo alemão”, responsabilidade no crescimento da xenofobia na Alemanha. Na política europeia mostraram-no na forma brutal como geriram a crise do euro, chegando mesmo a ameaçar a Grécia de expulsão do euro e da União, ao mesmo tempo que alimentaram uma campanha xenófoba contra os cidadãos da Europa do Sul, rotulados como preguiçosos e acusados de viverem à custa do contribuinte alemão. Na política internacional a Alemanha assumiu de forma crescente o seu papel de potência emergente, mais preocupada com o sucesso da sua política internacional do que com a construção de uma política comum europeia, como se viu (e vê) na tragédia síria, em que a Alemanha e a União são um não-ator.

A questão dos refugiados é mais complexa. Merkel assumiu, com coragem e sentido ético, a responsabilidade de acolher cerca de um milhão de refugiados e foi forçada a fazê-lo fora do quadro de uma política comum europeia de repartição das responsabilidades entre os Estados Membros, o que facilitou o discurso xenófobo. Os outros Estados Membros, salvo honrosas exceções, não se mostraram interessados numa política europeia de asilo, antes pelo contrário combateram-na.

Os resultados eleitorais são também consequência da opção do SPD de, em 2013, ter aceite a grande coligação com a CDU-CSU. O SPD não exerceu qualquer oposição às políticas neoliberais de Schäuble, contribuindo assim para o aumento da precariedade laboral na Alemanha, mesmo num quadro de crescimento económico. O SPD foi duramente castigado por essa opção, tendo obtido o pior resultado da sua história. Se, contrariamente às afirmações de Martin Schultz na noite eleitoral, aceder a uma nova coligação com a CDU/CSU, terá, provavelmente, o mesmo fim do PASOK ou do Partido Socialista francês.

Os já longos anos de governação Merkel foram tempos de estagnação e de crise europeia. A Alemanha afirmou a sua hegemonia na Europa, mas colocou a União em risco existencial. Não veio de Berlim nenhuma proposta significativa para superar os impasses europeus e assistimos ao enfraquecimento das estruturas supranacionais – desde logo a Comissão – e ao reforço de estruturas intergovernamentais como o Eurogrupo. Em paralelo, também a França deixou de ser motor da integração europeia, como o foi com Jean Monnet, Robert Schumann e Mitterrand. Macron propõe agora a refundação da União Europeia em bases mais democráticas, com um orçamento capaz de fazer frente às assimetrias europeias e com capacidade real de ação na resolução de conflitos.

Estamos perante um momento decisivo para a Europa – se a União não for capaz de se democratizar e de assumir a sua essência de justiça social, a derrota do nacionalismo em França não terá sido mais do que um breve e ilusório interregno.

Em 1947, Roberto Rosselini realizou a sua obra-prima Alemanha, ano zero. Nas ruínas da guerra, uma criança alemã procura a sobrevivência e encontra o desespero. Que percurso extraordinário percorreram desde então os alemães, que exemplo para a Europa e para o Mundo. O resultado eleitoral não é certamente o regresso ao ano zero da Alemanha, longe disso, mas será o ano zero, como princípio e não fim, da Europa, a partir do qual se dará o salto necessário na construção de uma Europa democrática e social? Não sabemos, mas o que podemos esperar é que os filhos e netos da criança do filme de Rosselini, estejam hoje à altura do enorme desafio da Europa democrática e social que se lhes coloca, que respondam afirmativamente à proposta do Presidente francês de aceitar dissolver o seu poder reencontrado numa Europa mais federal. Estará Merkel à altura de Adenauer, Helmut Schmidt e Helmut Kohl? Quero crer que não tem outra alternativa, como não temos nós, apesar do medo que os portugueses têm do federalismo.     

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