Uma cápsula do tempo para Martine Pisani

UNDATED, a peça com que a coreógrafa francesa encerra o festival Circular, é a “retrospectiva disfarçada” de tudo o que fez desde que chegou à dança nos anos 90 (e não foi pouco). Mas é sobretudo a reunião festiva da família artística que foi constituindo e que sonhou juntar um dia no mesmo palco.

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Ninguém diria, perante aquilo que está visível a olho nu em cima do palco – dez bailarinos completamente à vontade nas suas roupas de todos os dias que ao longo de uma hora articularão de várias maneiras, em várias posições, a festa que é estarem finalmente juntos, o que como se sabe é coisa para acabar em lágrimas –, que houve sobretudo muita matemática, muita tabela Excel, nos bastidores de UNDATED, a peça com que Martine Pisani encerra este sábado às 21h30, no Teatro Municipal de Vila do Conde, a 13.ª edição do Circular – Festival de Artes Performativas. Algumas das contas de cabeça que a coreógrafa fez para poder chegar a esta “retrospectiva disfarçada” de todas as peças que já apresentou desde que chegou à dança estão no site da Compagnie du Solitaire, a estrutura com que se aventurou nos anos 90 e com a qual veio a tornar-se parte do cânone das artes performativas francesas, e dão uma ideia do jogo que Pisani quis jogar: “Os dez bailarinos não dançaram todos nos mesmos espectáculos. Um dançou em quase todos os espectáculos. Três dançaram em quatro espectáculos. Dois dançaram em três espectáculos mas nunca se cruzaram (…). Um dançou em dois espectáculos e cruzou-se com seis colegas (…). Cinco choraram em dois espectáculos (…). Seis frequentaram uma escola de dança. Dois nunca tinham dançado. Nove têm olhos castanhos. Sete tiraram os sapatos em quatro espectáculos (…).”

É o inventário de uma história da dança contemporânea, a peça que Martine Pisani estreou em Junho no festival Uzès Danse e que agora terá a sua segunda apresentação em Vila do Conde. Mas não era bem nisso que a coreógrafa estava a pensar quando teve “o sonho impossível” de mostrar todos os seus espectáculos ao mesmo tempo – antes numa grande festa de família, a família artística que foi constituindo ao longo de todos este anos, de todas estas peças. “Já há muito que eu queria reunir as pessoas com quem trabalhei para as ver todas juntas num palco. Idealmente teria juntado muito mais, mas os constrangimentos da produção fizeram com que tivesse de reduzir o elenco a dez bailarinos e então cruzei idades e épocas: com este fiz uma peça há muitos anos, com aquele trabalhei pela primeira vez há pouco tempo... Na verdade não sabia muito bem onde queria chegar; queria simplesmente estar com aquelas pessoas, reencontrar-me com elas. E isso acabou por revelar-se um óptimo ponto de partida para a utopia de compilar todo um trabalho colectivo e de o partilhar com o público”, conta ao Ípsilon.

Mas antes de os conseguir juntar finalmente para um ensaio a dez, Martine Pisani trabalhou “imenso, imenso” sozinha – foi a fase das contas de cabeça, da matemática, das tabelas Excel: “Revi todas as peças que montei com estas pessoas, anotando: o Eduard [Mont de Palol] fez isto, o Laurent [Pichaud] fez aquilo… Fiz tabelas, desenhos, cronologias precisas de cada espectáculo para que ficasse claro na minha cabeça com quem fiz o quê.” Depois chegou Theo Kooijman, o mais fiel dos seus intérpretes (talvez haja quem se recorde de o ver em Contrebande, primeira vinda da coreógrafa ao Circular, na edição de 2006), e juntos atravessaram todo esse repertório, retendo recorrências, obsessões, vendo padrões na maneira como os espectáculos de Martine Pisani começam e acabam: “O Theo passou por todos os papéis, o que além do mais foi divertidíssimo. Mas esse exercício permitiu-nos sobretudo perceber o que é que regressa sempre nas minhas peças: o choro, o investimento

no rosto, a relação entre o espaço e os intérpretes e entre os intérpretes e os espectadores, a forma como olhamos e como nos olhamos. E a morte – também me apareceu muitas vezes.”

Espremer o limão

Vinte e tal anos depois do início, ali estava ela, Martine Pisani, diante do espelho, disposta a construir o futuro com o essencial do seu passado. “A melhor ideia que tive ao longo do processo foi a ideia de condensação: queria condensar no mesmo tempo e no mesmo lugar tudo o que fiz com estes bailarinos. É como quando se espreme um limão: retira-se o essencial”, explica-nos, repetindo por outras palavras, por outras metáforas (“talvez tontas”), o que escreveu na nota de intenções de UNDATED: “Como o vapor em suspensão, tudo está lá, mas de forma invisível.”

Claro que, apressa-se a acrescentar, muita coisa ficou pelo caminho: “Parte do trabalho foi definir o que é que ainda é importante mostrar hoje. Ao rever certas peças em vídeo houve momentos em não pude deixar de exclamar: ‘Ah, é magnífico!’. Mas depois vinha a altura de decidir o que retinha dali e o que deixava cair – e deixei cair imensas coisas.” O que ficou foi com ela para os ensaios, onde verdadeiramente se inventou este espectáculo, na presença – embora raramente simultânea – dos dez bailarinos. Dessa intermitência, aliás, nasceu uma das chaves de UNDATED, o instrumento que organiza as idas e vindas deste colectivo em torno do património comum previamente inventariado pela coreógrafa: os papéis que passam de mão em mão ao longo de toda a peça, e em que ao longo do processo, na ausência dos seus intérpretes, Pisani foi escrevendo instruções precisas (por exemplo: “trocar de bilhetes cinco vezes”; ou: “ler isto em voz alta”). “Regras comuns”, sublinha, “mas que dizem respeito a cada indivíduo”: “A certa altura, eles fazem uma sucessão de ups and downs, ou seja devem deitar-se e voltar imediatamente a pôr-se de pé. A acção é igual para todos, mas cada um a executa no seu tempo e no seu espaço.”

Mas UNDATED não seria uma festa, reconhece, se todos os convidados tivessem papéis rigidamente pré-determinados. “Ensaiámos intensivamente cada excerto e está tudo rigorosamente coreografado, mas a verdade é que só na estreia estivemos finalmente todos juntos no espaço certo para a peça – e foi verdadeiramente uma descoberta, como acredito que vá ser novamente em Portugal. ” Mas não propriamente a descoberta de um património coreográfico exposto nestes corpos como nas vitrinas de um museu, porque embora este espectáculo seja, para usarmos o feliz jogo de palavras de Pisani, um “already-made”, tudo o que se passa no palco “é novo”: “Os elementos vieram de peças anteriores, sim – foi como se abríssemos uma loja e começássemos a mostrar o que temos em stock –, mas o contexto mudou radicalmente: não está aqui nem o momento antes nem o momento depois. Daí o título da peça: nada disto tem data, tudo isto é verdadeiramente de agora. Livrei-me muito rapidamente de tudo o que me pareceu requentado.”

E portanto é de hoje, de aqui e de agora, não do passado nem do futuro, isto de Martine Pisani querer festejar a sério, com um espectáculo novo, e não apenas com “uma garrafa de champanhe”. “Estarmos juntos diante do espectador, continuarmos de pé…” – mais de 20 anos depois, até ela tem vontade de aplaudir.

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