Kaja Draksler: o jazz como posto de observação

A pianista eslovena traz à Culturgest, esta sexta-feira, Gledalec, álbum em octeto que a confirma como uma das criadoras mais estimulantes do jazz contemporâneo.

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O octeto, diz Kaja Draksler, contém a ideia de infinito FRANCESCA PATELLA
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FRANCESCA PATELLA

No seu impressionante primeiro álbum para a Clean Feed, um disco de piano solo gravado aos 25 anos, a eslovena Kaja Draksler agrupava um conjunto de composições que tanto destapavam uma sólida formação clássica como uma liberdade de interpretação jazzística com uma expressão madura, afirmativa, sem medo de se meter por caminhos pouco frequentados. Esse diálogo permanente e escorreito entre dois mundos cujas fronteiras se abatiam com frequência, e em que a música surgia sem acidentes na transição de ambientes de exploração das entranhas para as suas possibilidades melódicas, era então inspirado pelo lugar de observadora que Draksler definia para si e que motivava o título The Lives of Many Others (2013).

Depois disso, Kaja havia de gravar três álbuns em duo – com o baterista Onno Govaert, com o guitarrista Matiss Cudars e com a trompetista portuguesa Susana Santos Silva –, mas agora que publicou, de novo pela Clean Feed, um ambicioso disco em octeto, a pianista volta a sugerir no título esse lugar exterior, de quem usa a música para urdir um qualquer testemunho. Gledalec é uma palavra eslovena que significa, precisamente, “observador ou espectador”, mas é também o nome de um dos poemas (da autoria de Gregor Strnisa) que Kaja convoca para um álbum em que as vozes e as histórias têm um peso central.

“Escolhi também este título”, conta em conversa com o PÚBLICO, “porque senti que a peça homónima que tocamos representa aquilo que tinha imaginado que seria o som desta banda": "Ficámos muito próximos dessa ideia e essa peça pintava a imagem perfeita do nosso grupo. Além de que o poema tem uma atmosfera muito particular que me pareceu estar também ligada ao espírito do álbum.”

Se o equilíbrio entre formação clássica e natureza improvisadora tem estado sempre presente nos registos de Kaja Draksler, Gledalec eleva esse jogo de forças para um outro nível. Ao liderar um octeto – que ela faz questão de decompor num 4X2, significando que há quatro camadas justapostas formadas por duas vozes, dois instrumentos de sopros, dois de cordas e dois de percussão –, é sobretudo a sua faceta de compositora que emerge, e não tanto a de instrumentista. Esta sexta-feira, no palco da Culturgest, em Lisboa, perceberemos se ao vivo esses papéis se mantêm nas mesmas proporções.

“O piano aqui é secundário”, garante, “não tem um grande papel". "Estava mais concentrada na exploração das ideias de composição e pensei muito na quantidade de informação que devia passar aos músicos para preparar as secções improvisadas. Pensei imenso em quanta liberdade queria dar e quanto queria que a composição fosse respeitada, quão ditadora teria de ser no grupo e quanto deixaria para eles sentirem e fazerem livremente”, explica. A formação, escolhida com minúcia, dava-lhe as garantias de que precisava em relação ao estabelecimento de uma identidade musical avessa à rigidez e a linguagens demasiado presas, uma vez que todos os músicos foram seleccionados na cena local de Amesterdão, cidade onde Kaja Draksler vive, e cujo circuito é reconhecido por ter uma enorme elasticidade estilística, proporcionando o cruzamento de músicos com perfis muito diferentes.

Às palavras de Strnisa, Kaja quis juntar ainda a poesia de Pablo Neruda e de Andriana Minou, artista plástica grega a quem encomendou alguns textos que pudessem respeitar um “tom mais bem-humorado”. “Queria que o disco tivesse alguma leveza, porque me interessava compor música que não se limitasse a discorrer sobre a tristeza, os anseios ou as perdas – já há bastantes composições dedicadas a essas emoções não especialmente felizes.”

Aproveitando a deixa do humor, Kaja brinca ainda com a matemática da formação indicando que este número oito “oferece enormes possibilidades, porque se o deitarmos de lado ficamos com o símbolo de infinito”. Felizmente sem grande noção de limites, a pianista tem em actividade outras duas novas formações com as quais se tem ocupado: um duo com a pianista francesa Eve Risser, surgido por encomenda do Festival de Liubliana e da Clean Feed, mais apostado em explorar as possibilidades sonoras dos dois pianos do que em preencher todos os espaços com notas em catadupa e em exaltações virtuosas; e um quarteto de música improvisada no feminino, Hearth, partilhado com Susana Santos Silva (trompete), Mette Rasmussen (saxofone) e Ada Rave (saxofone), do qual haverá novidades em 2018.

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