Este luto amoroso que é um elogio da paixão

No seu sexto álbum, Quando se Ama Loucamente, Aldina Duarte serve-se da obra de Maria Gabriela Llansol como mote para contar a sua própria história de uma paixão finalizada sem aviso. É um dos grandes acontecimentos musicais do ano.

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Munida de um caderno de anotações retiradas dos livros de Maria Gabriela Llansol, Aldina escreveu numa só semana a quase totalidade das letras para o álbum, encostada à mesma árvore do Jardim da Estrela, em Lisboa, junto da qual se recolhia todas as tardes

É preciso recuar para se chegar ao agora e poder falar do presente. E é preciso recuar porque em Aldina Duarte os fados não são mera cantoria de entretém, não são simples forma de ganhar a vida, não são um qualquer recurso para preencher um vulgar gosto ou talento natural pelo canto e pela música. Os fados embrulham-se na própria vida, fazem parte de um continuado processo de autoeducação que tem sempre por fito caminhar para se construir como um ser humano melhor. Os fados fazem parte de um processo de aprendizagem diário e existem na mediação dessa tarefa sem-fim que é tentar viver mais pacificada na sua pele e na sua relação com os outros.

Aldina só pode chegar agora a Quando se Ama Loucamente porque passou os últimos anos a corrigir uma imperfeição que diagnosticou em si: a de não saber receber. Lembra-se bem, por exemplo, do dia em que no Sr. Vinho, casa de fados onde canta todas as noites praticamente desde que se descobriu fadista nos anos 90, foi abordada por um casal que lhe gabou a actuação e ela, em atitude autodepreciativa, passou o tempo a chamar a atenção para todas as suas falhas. “Oh Aldina, viste o que fizeste?”, perguntou-lhe António Zambujo – que estava por ali – assim que ficaram sozinhos. “Tu não sabes receber um elogio.”

“Eu venho de uma cultura em que dar é mais importante do que receber”, explica ao Ípsilon, preparando o caminho que nos traz até ao seu sexto álbum, a ser publicado dia 13 de Outubro. “Hoje sei que não é mais importante, mas quando não o sabia achava que assim era a melhor maneira de funcionar, acreditava sempre que tinha de ser eu a merecer as coisas e para isso tinha de batalhar imenso por elas. Tudo tinha de ser uma grande luta. E, depois, se não conseguisse era porque não merecia.”

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Em 2007, quando a fadista foi dispensada do catálogo da EMI portuguesa na altura em que passou a ser gerida a partir de Espanha – a par de Aldina, também Sérgio Godinho, Jacinta ou Mesa não foram considerados prioritários –, foi precisamente uma grande luta que teve de empreender para conseguir fazer nascer o álbum Mulheres ao Espelho (2008). De repente, via-se forçada a um caminho “muito penoso e muito aflitivo – tinha de cantar, fazer contratos, negociar, fazer a promoção, editar, aprender o que eram guias de transporte –”, em que na ausência de alternativas editoriais pediu um empréstimo bancário, criou o seu próprio selo e pôs em marcha um processo que recompensaria a obstinação com a afirmação definitiva do seu lugar no fado.

Passados três anos, ao lançar Contos de Fados, disco em que convidava gente como José Mário Branco, Maria do Rosário Pedreira ou Manuela de Freitas a escreverem poemas baseados em obras literárias, Aldina convencia-se de que neste pandemónio da era digital – que cada vez mais se anunciava como pouco macio para quem só quem conseguia pensar nos discos como um objecto total, alimentado por um guião – a sua discografia teria possivelmente terminado. Em paz com essa evidência, entregou-se à plena realização do seu canto nas noites do Sr. Vinho e nalguns concertos pontuais.

Só que depois, quando já tinha arrumado as ideias dos discos no fundo das preocupações, veio a poetisa Maria do Rosário Pedreira desafiá-la para a ideia de escrever para a sua voz um romance que haveria de ser cantado sobre um conjunto de fados tradicionais. E vieram ainda a Sony Music, mais Pedro Gonçalves (dos Dead Combo) juntar-se ao núcleo duro de Romance(s). Pela primeira vez, os papéis invertiam-se, eram propostas que chegavam de fora, era Aldina a espicaçada e não aquela que espicaçava, e o trajecto apresentava-se-lhe sem ter de calçar as luvas e preparar-se para mais uma luta tremenda.

No final da gravação, Pedro Gonçalves havia de prometer-lhe que aquela relação musical não terminava ali, ainda que não houvesse qualquer plano concreto no horizonte próximo. Era uma manifestação de vontade que deixava a porta entreaberta, caso Aldina a quisesse transpor. Mas, nova surpresa, seria um outro estímulo exterior a chegar-lhe de forma inesperada. Há dois anos, numa manhã enganadoramente igual a tantas outras, ao espreitar por rotina o email a cantora havia de se ver boquiaberta com uma mensagem de Manel Cruz, ex-vocalista dos Ornatos Violeta e actual Foge Foge Bandido, que lhe enviava uma canção solta inventada a pensar nela. Era, na verdade, uma velha promessa que ficara no ar há uns anos, na única vez em que tinham encontrado, nos bastidores dos concertos de reunião dos Ornatos no Coliseu dos Recreios, em 2012. Mas a manifestação desse desejo futuro podia não passar disso mesmo, uma intenção esmorecida e apagada pelo tempo.

“De repente, aparece aquilo assim, vindo do éter, e eu lá fui ouvir o Manel com aquela voz de chaga”, lembra. Aldina não lhe chama “voz de chaga” num trocadilho pouco imaginativo com o título da canção dos Ornatos (Chaga), mas por sentir que “a voz dele parece que tem sempre uma feridinha a sangrar, poucochinho mas nunca sara, uma coisa de ferida do joelho, arranhado”. “Adoro a voz do Manel porque é capaz de uma violência extrema, mas há sempre aquela coisa infantil, aquela coisa de joelhos esfacelados.” A sua primeira reacção, ao escutar aquela pequena canção em voz e teclado, foi achar que não valia a pena mexer um milímetro, estava tudo já demasiado perfeito para se atrever a meter a sua mão e poder sujar aquele objecto. Mas lembrou-se dessa lição que tanto tempo tinha levado a aprender, a lição de saber receber. Acontecia, no entanto, que aquela canção chegava numa altura delicada. Não só Aldina não tinha nenhum disco em perspectiva, como não estava na disposição de pensar nisso no imediato. Por aqueles dias, estava “em pleno luto” da segunda grande história de amor da sua vida.

O processo de limpeza

No imediato, turvada pela dor dessa perda, Aldina Duarte nem se deu verdadeiramente conta do quanto um tema chamado Quando se ama loucamente, o tal enviado por Manel Cruz, parecia um acidental fato à medida da sua história. “Diria que a arte não tinha ainda espaço naquela dor”, recorda. “Ainda não estava na altura de ler um livro e ficar melhor – isso seria mais tarde; ainda não estava na altura de ouvir uma música e sentir-me menos sozinha – isso seria mais tarde.” E então, deixou o tema em repouso, oito meses à espera de que o seu sangramento amoroso estancasse e lhe permitisse recuperar a lucidez dos sentidos, algo que foi conquistando graças aos fados que cantava todas as noites e aos livros de Maria Gabriela Llansol.

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Não era um luto fácil que Aldina tinha pela frente. O fim da relação foi tão inesperado que Aldina lhe chama “um acontecimento trágico” e o compara à situação de estar feliz à espera da pessoa amada e receber um telefonema a dar conta de um acidente que lhe levará o companheiro para o hospital, do qual nunca mais voltará a ter notícias. “A sensação que tive foi mesmo de uma morte acidental, porque em plena paixão, no auge de tudo, foi muito estranho”, diz. Aos poucos, começou a “arrumar a casa”, a conseguir ver-se de fora, a saber gerir “aquele acontecimento tão inesperadamente doloroso, mas inesperadamente feliz”.

E não se tente ver nesta proximidade de dor e felicidade qualquer promiscuidade entre os dois sentimentos indiciadora de pontadas de masoquismo ou autocomiseração. Ou se alguém o tentar, que o faça por sua conta e risco. Aquilo que Aldina constrói em Quando se Ama Loucamente é antes a sua narração de uma paixão que lhe trouxe uma imensa felicidade antes do desastre, felicidade essa que ela não está disposta a escorraçar da memória como instinto terapêutico, nem tão-pouco a higienizar de forma extrema as suas recordações livrando-se das boas só porque podem trazer apensas as más. “Somos nós que escolhemos se queremos ficar com a parte melhor ou com a parte pior”, justifica. “Há alturas em que é preciso ter raiva e deixar a raiva sair, transformar o outro num monstro para seguirmos para a frente. Mas não era aí que eu queria ficar. A raiva, para mim, é só um processo de limpeza. Acho uma emoção muito útil, mas absolutamente dispensável para viver uma vida sadia, porque a raiva é insana.”

Quando se Ama Loucamente é, portanto, uma forma de Aldina Duarte escolher aquilo que quer que perdure em si da sua história, após uma primeira tentativa de escrever uma novela a partir desses acontecimentos reais. Transitou depois para uma história infantil – que está ainda em fase de escrita – “à laia dos irmãos Grimm, um bocadinho violenta”, ri-se, mas admitindo que o tom se deve também a uma certa irritação que sente perante a obsessão actual “de que tudo tem de ser branqueado – como se as crianças não tivessem de lidar com as coisas tal como elas são”. É dessa “historinha” que surge o primeiro tema do novo disco, Conto de fadas, um fado-caixinha-de-música em que relata o encontro amoroso que dá o mote a esta história.

A luz de Llansol

Ao quarto tema do álbum, Quem me vê, à medida que vai espalhando migalhas da sua história real pelos versos de cada fado, por vezes com frases literais roubadas à realidade, Aldina revela outra das coordenadas fundamentais desta narração e do seu luto. “Quem me vê é que me tem / Diz no livro que me deste / Pelas páginas marcadas / As palavras sublinhadas / São promessas que esqueceste”, canta sobre o Fado Mortalhas. Ora o livro que lhe foi ofertado pelo então companheiro existe mesmo, foi escrito por Maria Gabriela Llansol (1931-2008) e a obra da autora tornou-se uma espécie de lugar onde Aldina se aninhou enquanto lambia as feridas e reaprendia a encontrar contentamento nos seus dias. “É aqui [nos livros de Llansol] que me sinto bem, é aqui que estou a ter muito prazer no meio disto que aconteceu, é onde me sinto confortável, onde sinto que estou a conseguir voltar a pensar, a sentir, até a sentir-me livre”, recorda-se de dizer para consigo. “Às tantas, era ali que eu queria viver. Foi como se ela me tivesse recebido de braços abertos. E quando é assim alguma coisa boa acaba por aparecer.” Foi sempre assim que foi regando o seu percurso artístico – se ia todos os dias ao cinema, como fez durante uma fase, alguma coisa boa havia de germinar daí.

Ora a consequência directa de se banhar repetidas vezes nas palavras de Maria Gabriela Llansol seria a descoberta de que, tomando por mote citações dos livros – que surgem em epígrafe junto ao poema que inspiram –, encontrava neles suficientes deixas para escrever as letras do disco. Na “companhia” de “uma mulher que se percebe que devia viver solitariamente – mas que não sofria de solidão” e elegendo Llansol para o norte da escrita dos poemas de Quando se Ama Loucamente, Aldina quis respeitar o tom luminoso da escritora, tal como quis ser fiel ao seu processo e superação do luto amoroso. “Por isso é que criei os cenários para a história através dela, porque deu-me coragem para contar aquilo que as duas ‘juntas’ chegámos à conclusão que é mais importante para mim e para quem possa ouvir. E contei os factos mais marcantes, desde o começo até ao final da relação, como tudo aconteceu e se desenrolou, como é que acabou, criando um espaço para a narrativa através da obra dela, usando frases da Llansol.”

É fácil de tomar os fados do disco como reflexo da relação de um leitor com uma obra que o marca, uma obra onde se projecta, descobrindo nas palavras de outro as pistas para a sua própria vida. Por isso, defende a fadista, é que o contacto com Llansol ditou o fim da sua solidão, transformando a escritora em “confidente, confessionário, um lugar onde ir e voltar”. E não sendo Llansol uma mulher amargurada, imagem criada por Aldina a partir da leitura das suas obras e do contacto posterior que encetou com os fundadores do Espaço Llansol, quis que os seus fados lhe seguissem as pisadas. “Tinha de pensar naquilo que sentia e que sinto”, explica, “mas também de respeitar a nobreza e a grandeza desta mulher que vive noutra realidade, noutro mundo. Falo de mim através dela, mas respeitando-a sempre. Se queria defender um determinado sentimento mas esse sentimento não estivesse na Llansol, então não o podia fazer – foi esse o meu limite.”

Depois, munida de um caderno de anotações retiradas dos livros da autora e do guião para contar a sua história, Aldina escreveu numa só semana a quase totalidade das letras para o álbum – as excepções são um poema pedido à sua habitual cúmplice Maria do Rosário Pedreira, o tema de Manel Cruz e uma leitura de um texto da sua musa por João Barrento (do Espaço Llansol), escolhido para ecoar o tom do restante material –, encostada à mesma árvore do Jardim da Estrela, em Lisboa, junto da qual se recolhia todas as tardes.

Elogio da paixão

Trazendo os factos da sua história para os versos de cada fado, Aldina Duarte anuncia também que este é um “elogio da paixão”, uma forma de contrariar a “visão errada e muito empobrecedora que é minimizar e considerar a paixão uma irmã desmiolada do amor”. Quando se Ama Loucamente dá conta também dessa força violenta e frequentemente irracional da paixão, dessa energia que é vista como perigosa num mundo cada vez mais fanático pelo controlo e desconfiado do impulso. “Entre telenovelas e notícias sensacionalistas escarrapachadas”, queixa-se a cantora, “a paixão está associada à loucura e ao crime. São pessoas que se matam por paixão ou que matam outros por paixão, como se a maior parte dos apaixonados andasse por aí a matar.”

E tão imprevisível e fervente pode ser a paixão, defende, que mesmo o poder financeiro e político a tentam manter tapada e longe dos olhares, adormecida e pouco dada a pandemias, para que as paixões amorosas, por causas ou por ideias possam permanecer devidamente sossegadas. Este é um álbum também estimulado pela saída de Aldina do seu próprio adormecimento e de um centro que foi, durante meses, a dor que lhe roubava o espaço para tudo o resto. Foi ao ver a notícia da visita do Papa Francisco aos refugiados na ilha de Lesbos, em Abril de 2016, ao ver a imagem de uma criança síria morta numa praia turca que se propagou por todo o mundo e ao dar por si a pensar no que “faz pessoas que fogem de uma certa em terra para arriscar a morte no mar” que finalmente saiu de si e se religou, em definito, a uma pulsão de vida.

O que significa também que Quando se Ama Loucamente é a partilha de uma dolorosa história dos afectos, mas em simultâneo uma declaração de respeito pela vida – em sentido amplo –, de relativização dos sofrimentos e uma forma de se lembrar que se “nem tudo o que nos faz sofrer e acaba mal tem de ser morto e enterrado”, é também uma sorte e um privilégio poder passar por estas histórias e não por outras. E poder contá-las e cantá-las, seguindo em frente, sem fantasmas no encalço.

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