Isto (não) é só um filme

A reacção extremada a Mãe! de Darren Aronofsky é um reflexo da necessidade da sua provocação na actual paisagem do cinema americano

Que Mãe!, de Darren Aronofsky, seja desde já um dos filmes mais controversos e polarizadores de 2017 parece ser razoavelmente consensual – não restam muitas dúvidas que era precisamente isso que o realizador de Cisne Negro e O Wrestler, que nunca acreditou em facilitar as coisas (nem para si nem para o espectador), queria. A surpresa é a polarização extremada da reacção, com críticos repartidos entre a bola preta e as cinco estrelas e os resultados de bilheteira a reflectirem a insatisfação do público com um filme deliberadamente desagradável, que utiliza os cânones da convenção narrativa como simples “corda da roupa” para pendurar os lençóis. Mãe! dinamita pelo interior o acordo convencionado com o espectador incauto de que vai entrar na sala de cinema e que, seja o que for que vai ver, tudo acabará bem no final porque “é só um filme”. A isso Aronofsky diz (e desculpem-nos a palavra) “bardamerda”. Se querem cenas confortáveis, fiquem em casa a ver o Downtown Abbey.

Mãe! não é um filme pensado para deixar ninguém confortável. Não quer anestesiar o espectador para achar que tudo fica bem quando acaba bem, quer sacudi-lo da complacência em que a facilidade genérica da narrativa tradicional o deixou adormecer. não faz outra coisa que não seja atirar constantemente o espectador para tão longe quanto possível da sua zona de conforto – e se este filme tivesse sido produzido independentemente, sem vedetas nem máquina de marketing de Hollywood, e estreado no circuito de multiplexes, não teria havido metade da controvérsia que o tem rodeado. E isso, por si só, é significativo: Aronofsky quebrou, em plena consciência do que estava a fazer, o pacto sagrado “não alienarás o espectador ao ponto de ele se revoltar contra nós”.

Aqui entre nós, ainda bem. Precisamos, cada vez mais, de filmes assim - que nos acordem do torpor em que Hollywood parece querer manter-nos, que nos confrontem com a incerteza, a impotência, a dúvida. Jennifer Lawrence é uma figura de pura passividade que todo o filme parece comprazer-se em humilhar e minimizar até ao momento em que literalmente explode (porque não existe fúria no inferno como a de uma mulher desprezada). A via sacra que Aronofsky criou para esta mulher que se vê reduzida ao mínimo denominador comum da esposa-mãe-amantíssima-e-dona-de-casa-ao-serviço-do-marido-que-traz-o-ordenado-para-casa é um quadro em branco onde cada espectador, se a isso estiver disposto, poderá projectar o que bem entender. Lawrence e Aronofsky, nas entrevistas que deram, têm deixado claro que o filme foi escrito como uma metáfora das alterações climáticas – mas a proposta de Aronofsky é tão universal e tão imprecisa que pode ser lida, por exemplo, como uma metáfora de uma relação matrimonial abusiva, um retrato de uma mulher que deixa as convenções sociais ditarem o seu comportamento até ao momento em que já não aguenta mais.

Não é para pensar que vamos ao cinema, dirão alguns, e estarão no seu direito (mesmo que isso demonstre, por si só, uma visão redutora do que é o cinema). O papel da arte, no entanto, qualquer que seja a sua forma (e o cinema é uma arte, mesmo que não o queira aqui e ali ser), é provocar, fazer pensar. E Mãe! é, indubitavelmente, cinema. Não é preciso gostar dele para celebrar a sua existência como um dos filmes mais importantes de 2017, independentemente do seu destino nas bilheteiras. E, ao contrário do que muitos podem achar, aqui está um filme que não corre o risco de ser esquecido tão depressa. Era bom que houvesse mais filmes assim: quer dizer que o cinema ainda quer dizer alguma coisa.

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