Nas cidades do futuro será difícil escapar ao Big Brother

Rogério Alves, ex-bastonário dos advogados, avisa: “Vamos ter de nos conformar com uma sociedade cada vez mais bisbilhoteira.”

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A ameaça terroristas está a tornar as sociedades esquizofrénicas no que diz respeito à segurança WOLFGANG RATTAY/REUTERS

Ter de passar por uma máquina de scanner corporal, como nos aeroportos, cada vez que se vai a um grande concerto ou simplesmente ao cinema. Ser filmado a cada passo pelas câmaras de videovigilância, seja na rua, seja nos transportes públicos. Nalguns casos com recurso a tecnologias de reconhecimento facial. Com a ameaça terrorista bem presente na cabeça, muitos dos que estudam as questões de segurança no quotidiano e no futuro das cidades não têm dúvidas: não existem grandes alternativas ao Big Brother da sociedade imaginada por George Orwell em 1984, por muito que o incremento deste tipo de mecanismos possa comprometer a privacidade dos cidadãos.

“É um pouco inevitável. Não temos solução alternativa”, observa o presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo, António Nunes, antevendo a generalização das câmaras de vigilância nos espaços públicos das cidades dentro de escassos anos. E os drones também irão ajudar nesta missão.

A própria arquitectura urbana vai ter de se adaptar ao desafio, e disso podem resultar cidades menos bonitas e também menos amigas dos cidadãos, que é como quem diz com mais obstáculos à sua mobilidade, admite, sem ilusões, o também professor do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da Universidade Lusófona. “Hoje já aceitamos que numa praça só haja um ou dois sítios com mobilidade para todos”, isto é, sem barreiras arquitectónicas à circulação, exemplifica. É o preço da contenção do perigo, aliado à urgência em desenvolver soluções para a ameaça terrorista, e até já tem um nome: design outcrime, quando o mobiliário urbano ou até as ruas e praças são concebidos para minimizar a vulnerabilidade ao terrorismo mas também a outros fenómenos, como o vandalismo ou o tráfico de droga. Se os traficantes usam as reentrâncias bancos de rua ou dos caixotes do lixo para guardar droga, há que desenhá-los sem esconderijos.

A restrição da circulação automóvel em zonas de maior aglomeração de pessoas é outro expediente a equacionar, e que desta vez poderá tornar as cidades mais aprazíveis. É também a esta gestão de peões e viaturas que se refere também Luís Guerra, professor no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, quando fala nas cidades inteligentes – as chamadas “smart cities” – em que se sabe em tempo real onde são precisos reforços policiais ou simplesmente mais caixotes do lixo, por exemplo. Mas a gestão automatizada das cidades também tem riscos e não apenas eficiência, vai avisando: desde logo há que garantir a redundância dos sistemas, sob pena de eventuais avarias ou ciberataques poderem gerar o caos quando falamos do fornecimento de água ou energia.

Num artigo publicado na Harvard Business Review em Abril passado, intitulado As cidades inteligentes vão ser um pesadelo para a segurança, o presidente da CompTIA, associação de profissionais de tecnologias de informação de todo o mundo, explica como muitas cidades avançam para a instalação destes sistemas sem cuidarem de assegurar a sua inexpugnabilidade. “Um hipotético ataque informático no Norte dos Estados Unidos pode deixar 93 milhões de pessoas sem electricidade”, explica. Ficção? Já sucedeu várias vezes, embora numa escala incomparavelmente menor, aponta o presidente da CompTIA, Todd Thibodeaux.

Seguir um suspeito na rua pelas câmaras enquanto ele entra numa loja, sai para a rua e embarca no autocarro, sem nunca o perder de vista, e só o interceptar no final deste percurso não é, para Luís Guerra, um cenário assim tão distante. “Mas não podemos vender os nossos direitos, liberdades e garantias em favor de uma segurança invasiva”, defende o presidente da CompTIA.

António Nunes diz que deitar mão tanto dos scanners corporais como das tecnologias de reconhecimento facial implicará “rever todo o padrão legislativo” em vigor – não sem que antes as perdas e ganhos deste tipo de soluções sejam objecto de ampla discussão.

Neste momento existem zonas de várias cidades europeias que sofreram atentados patrulhadas por forças militares, e o antigo ministro da Administração Interna Rui Pereira pensa que isso também poderá vir a suceder em Portugal, se surgir um cenário idêntico. O também ex-presidente do Observatório de Segurança antevê uma tendência para a privatização e para a militarização das funções associadas à protecção de pessoas e bens. O presidente da Associação das Empresas de Segurança , Rogério Alves, concorda e vê potencial de crescimento neste sector, no qual já trabalham cerca de 35 mil pessoas para áreas que, por enquanto, ainda pertencem à administração central, como a vigilância de instalações críticas do Estado que necessitem de protecção especial. As prisões, por exemplo.

“Muitos dos problemas de segurança já não estão a ser resolvidos pelo Estado – ou pelo menos as pessoas assim acham”, explica Daniel Seabra Lopes, um investigador do Instituto Superior de Economia e Gestão que coordena um projecto sobre os novos formatos de segurança nas cidades do Sul da Europa e do mundo. Daí o surgimento de fenómenos como os movimentos cívicos virados para a autoprotecção – o “do it yourself policing” –, com frequência apoiados nas redes sociais, com base na denúncia de situações consideradas perigosas ou na divulgação das fisionomias de pessoas suspeitas de crimes. Na Alemanha, por exemplo, as autoridades policiais já tentam fazer um esforço de coordenação com estes grupos.

Também a trabalhar neste projecto, focado nas formas de policiamento que se vão desenvolvendo numa zona cinzenta entre o militar e o civil, o legal e o ilegal, o formal e o informal, a investigadora Rita Raposo tem dedicado atenção aos condomínios fechados, modalidade de habitação mais apetecida pela classe média e média-alta do que pelos mais ricos. Mas conclui que o aumento da reabilitação de cidades como Lisboa, aliado à crise que assolou o país até há poucos anos, fizeram com que os condomínios tivessem deixado de ter sucesso. E não vê Portugal como um país inseguro. “Mas a insegurança autoalimenta-se”, avisa a professora universitária.

Rogério Alves, que já foi bastonário dos advogados, não tem dúvidas de onde nos leva este caminho: “Vamos ter de nos conformar com uma sociedade cada vez mais bisbilhoteira. É o preço que teremos de pagar.”

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