Professores de verdade? Estão todos na Faculdade.

Uma Faculdade de Ciências diferente da de João André Costa, que publicou no P3 o texto "Professores de verdade? Só fora da Faculdade!"

Foto
kshelton/Unsplash

Fui mais um dos alunos que durante anos percorreram os corredores da Faculdade de Ciências, e como muitos, guardo na memória toda uma variedade de episódios, bons e maus, que por lá vivi. Recordo os anfiteatros cheios, com os professores a debitar matéria, as longas horas de estudo, o nervosismo antes daquele exame de Bioquímica e as tardes de cartas no bar da faculdade.

Recordo também aqueles primeiros dias em que me senti um pouco perdido e meio assustado com este novo mundo que se abria à minha frente. É um clichê repetido ad nauseam, mas a transição do ensino secundário para o ensino universitário será, porventura, um dos momentos mais marcantes da vida académica de um estudante. Em vez de um ensino mais próximo e com um ritmo mais confortável, existe no ensino universitário um maior distanciamento entre professores e alunos, e um ritmo muitas vezes frenético. Enquanto aluno, senti necessidade de sair da minha zona de conforto e participar ainda mais activamente na minha formação académica, ou seja, independentemente do meu objectivo de vida, e também para honrar o esforço financeiro dos meus pais que me pagavam as propinas, cabia-me a mim percorrer o caminho para lá chegar.

Recordo ainda, como é claro, os professores que inspiravam caricaturas que coloriam o nosso dia-a-dia e nos permitiam estabelecer laços de cumplicidade. A vida académica é dura, e estávamos todos no mesmo barco, umas gargalhadas à custa das mascotes da universidade sempre aligeiravam as coisas.

A maioria dos alunos de biologia não irá para a Faculdade de Ciências na expectativa que um David Attenborough os entretenha com descrições de comportamento animal. Mas, por vezes, mesmo as expectativas mais realistas podem ser defraudadas por professores apáticos, levando os alunos a desistir de assistir às aulas teóricas. No entanto, uma atitude responsável e um espírito de iniciativa autodidáctico conseguem colmatar as limitações destes professores, fazendo com que haja alunos que não fazem da mui nobre arte do copianço o seu modus faciendi. Mas em retrospectiva vejo que o actual modelo de ensino superior poderá ter contribuído, e muito, para a qualidade das aulas. Não é razoável esperar que um professor tenha, ano apos ano, a mesma energia para entreter uma audiência de cerca de 200 alunos num anfiteatro de grandes dimensões. Para além disso, quem já alguma vez esteve na posição de docente, deverá saber que a qualidade de uma aula depende da existência de uma dinâmica entre professor e aluno, onde deverá haver contribuição de ambas as partes. Se recordo os professores apáticos, também recordo os alunos que respondiam às perguntas do professor com uma apatia desencorajadora, não somente por talvez terem o cérebro a marinar em Bacardi, mas possivelmente também devido à sua própria postura.

Nem todos os professores têm o mesmo talento para leccionar, mas mesmo os que o têm são confrontados com uma tarefa muito difícil de executar dia após dia. Assim sendo, é legítimo que um professor universitário, desgastado por um sistema que cada vez mais favorece lucro e quantidade em detrimento da qualidade, opte por cumprir os requisitos mínimos de entregar aos alunos os conhecimentos teóricos básicos dos mais variados ramos da biologia, ficando o entretenimento para outra altura. Importa também salientar que, se nos meus dois primeiros anos do currículo de biologia, o ensino foi mais massificado, onde nem todas as cadeiras me despertaram o mesmo interesse, sucederam-lhes um terceiro ano mais especializado, onde aulas com menos alunos e tópicos que correspondiam ao meu interesse foram absolutamente inspiradores. E este sentimento foi ainda mais marcado quando decidi prosseguir com um mestrado, também na Faculdade de Ciências.

Ao longo de todos esses anos os meus conhecimentos teóricos foram complementados com uma componente prática onde sempre existiu tempo e oportunidade para a discussão científica. Delirei com aulas práticas de fisiologia animal focadas na regulação nervosa do sistema cardiorrespiratório ou com as de genética e desenvolvimento onde estudámos o controlo genético da formação de dígitos em embriões de galinha.

Ou seja, sobre os meus anos na Faculdade de Ciências e sobre os professores com quem me cruzei, vejo que apesar dos seus maneirismos pessoais ou defeitos profissionais todos eles contribuíram para a minha formação. Para além disso, a Faculdade de Ciências representa a alma mater de muitas histórias de sucesso, e o seu corpo docente, por ter contribuído para esse mesmo sucesso, merece respeito. Uns serão mais inspiradores do que outros, uns serão verdadeiros e outros menos verdadeiros, mas a elaboração de críticas levianas a docentes ou a tentativa de ridicularizar o seu foco de estudo é não só absurda e desnecessária, como ainda revela pouca maturidade académica e um espírito redutor. Ao mesmo tempo, a avaliação da qualidade da componente teórica e prática do currículo do curso, com base em preferências individuais subjectivas, não ajuda a orientar um debate construtivo e sensato para a melhoria do ensino superior nesta faculdade, e, levada ao extremo, remete-nos para um cenário onde se confundirá a obra prima do mestre com a prima do mestre de obras.

Hoje em dia raramente volto à Faculdade Ciências, mas sei que a grande maioria dos meus professores ainda lá está. Muitos foram os que dentro da faculdade me abriram horizontes, me desafiaram e despertaram um interesse ainda maior por Biologia, tendo sido em torno destes que procurei gravitar. Aprendi muito com todos, e todos contribuíram para o que sou hoje e para o caminho que ainda percorro. Estou-lhes muito grato por isso.

Para finalizar, atrevo-me a dizer que cada aluno percorrerá um caminho diferente, muito em função das suas escolhas, comportamentos e ambições. Nunca encontrei na Faculdade de Ciências um obstáculo que não fosse possível derrubar ou contornar enquanto perseguia a minha vocação, pois na universidade somos agentes activos no desenho do nosso futuro, e com ou sem dotes para entreter, os professores de verdade estão todos lá para nos guiar, há é que saber e querer procurá-los.  

Sugerir correcção
Comentar