Herb Ritts, o peregrino da beleza

Procurava universalizar a beleza do corpo. Essa tentativa de libertação das amarras do tempo é a caminhada de Em Plena Luz, exposição no Centro Cultural de Cascais.

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Para conseguir o que queria, Herb Ritts fazia os seus modelos passar pelas piores tormentas. Madonna foi uma das “vítimas”

Para conseguir o que queria – fotografias belas – Herb Ritts era capaz de fazer passar os seus modelos pelas piores tormentas. No final, aquilo que ficava impresso no negativo não só compensava o esforço, como convencia os mais cépticos de um talento que ajudou a emancipar aquilo a que se convencionou chamar, por vezes de maneira frívola e simplista, de “fotografia de moda”.

Madonna, uma das celebridades que mais posou para as câmaras do fotógrafo californiano, foi uma das “vítimas” de Ritts, que preferia fotografar, sempre que possível, com luz natural. Um mês depois da morte do fotógrafo, em Dezembro de 2002, a cantora foi convidada a fazer um elogio fúnebre. Emocionada, gracejou com vários episódios da amizade que os unia e lembrou como foi ser “herbificada”, ou seja, como foi o seu processo de baptismo para entrar no universo visual depurado, exigente, elegante e radical-minimalista de Herb Ritts (1952-2002). Contou como dançou e rebolou na areia (“Como uma idiota”), como entrou nua nas águas geladas do oceano e como saiu dessa sessão, em meados dos anos 80, a sentir-se como um “rato afogado” e a pensar que nunca mais trabalharia com aquele fotógrafo “com ar de tonto” (“Arghhh! Isto não vai acontecer outra vez”). Até que chegou o momento em que Madonna viu essas fotografias, um momento que a fez esquecer os escaldões e os enregelamentos e em que mudou “imediatamente” de opinião. Foi o início de uma longa e frutífera relação de trabalho e também de uma grande amizade.

Sinais dessa química entre Madonna e Ritts não faltam na exposição Em Plena Luz, que o Centro Cultural de Cascais (CCC) mostra até 21 de Janeiro. Está lá, por exemplo, uma das fotografias mais icónicas da cantora que fez capa da revista Interview em Junho de 1990, onde surge provocadora, de camisa sevilhana às bolinhas e com uma mão entre as pernas; ou, antes disso, a fotografia que deu origem à capa do seu terceiro disco de estúdio (True Blue, 1986, o primeiro a ter grande sucesso), onde aparece mais sensual, com o pescoço esticado ao limite, cabelos rebeldes (a fazer lembrar Marilyn) e de olhos fechados, “como uma cobra a apanhar sol”. Para além de muito reenquadrada, a imagem para a capa do disco foi colorida à mão, procurando o tom azul que o nome do álbum proclama e uma aproximação à estética pop, que um preto e branco cirúrgico como o de Ritts tinha mais dificuldade em transmitir. Vista sem esta máscara de cor artificial, percebe-se que a imagem original foi feita debaixo de uma luz inclemente, com o Sol a pique, quando tudo na fotografia resulta mais esbranquiçado e árido. Num português adocicado com sotaque brasileiro, a curadora italiana Alessandra Mauro explica ao ípsilon que uma fotografia como esta, captada por volta da uma da tarde, revela coragem, risco e um sentido estético apurado. “Não sei quantos fotógrafos com a oportunidade de trabalhar com Madonna durante duas horas arriscariam uma coisa assim, mas ele arriscou. E deu certo, claro. A esta hora, a luz é terrível, dura, mas tem um efeito muito forte. Um fotógrafo tem de ter uma grande consciência das suas capacidades para poder arriscar uma decisão destas.”

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Quando Herb Ritts captou Madonna debaixo desta luz natural forte, tinha percorrido apenas meia dúzia dos 25 anos que durou a sua carreira, tragicamente interrompida com a morte aos 50, depois de complicações pulmonares na ressaca de uma sessão com o actor Ben Affleck no lago seco El Mirage, na Califórnia. Era uma experiência ainda curta, mas suficiente para ter conseguido apurar uma forma de expressão visual e artística muito pessoal e diferente das que existiam à época, um tempo em que reinavam nomes como Helmut Newton (seu amigo e mentor), Bruce Weber, Richard Avedon e Peter Lindbergh.

Basta um olhar de relance para uma sala cheia de fotografias de Ritts para se perceber que lhe interessava sobretudo fixar imagens dos corpos na sua relação com a natureza, quer se tratasse de uma celebridade (como tantas que enchem as paredes do CCC) numa praia de Malibu, quer se tratasse um anónimo numa aldeia recôndita em África. É possível sentir a sua busca pelo confronto de texturas (sobretudo da pele com todas as outras) e entrar num ambiente pleno de comunhão, onde os fotografados se entregam nas mãos e no olhar do fotógrafo, que consegue transmitir-nos sempre um humor, um temperamento, um estado de espírito; uma empatia, uma afinidade intelectual ou uma amizade. A maneira como trabalhava a luz natural (quase todas as fotografias de Em Plena Luz foram captadas fora do estúdio) e as formas do corpo humano dão-nos a sensação de estar a olhar para uma divindade, quer se trate de um rosto reconhecível ou não.

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A esta capacidade de revelar muito mais do que corpos no espaço, Ritts acrescentava um modo de fazer que procurava o despojamento, a simplicidade – os adereços são mínimos, o bricabraque nulo.

Nesta prática que se alimenta de uma estética clássica, que ao invés de idealizar, procura universalizar a beleza do corpo, torná-la transcendente, Ritts persegue imagens “que, passados 100 anos, não ostentem o mínimo sinal de envelhecimento”. Uma tentativa de libertação das amarras do tempo e um desejo último de chegar à “elegância”, um atributo que na opinião do fotógrafo deixou de se ver desde Horst P. Horst (1906-1999), talvez por culpa do protagonismo da roupa e dos objectos sobre a fotografia. Para Alessandra Mauro, que dirige a reputada editora Contrasto, Ritts conseguiu passar no teste do tempo, ainda que hoje se possa olhar para as suas fotografias como realizações anacrónicas: “Já ninguém fotografa assim, mas também já são poucos os que têm a relação que ele teve com a fotografia analógica, com formas de impressão a prata e a platina… o preto e branco é usado de outra maneira, isso é claro. Mas por serem clássicas, acho que até hoje estas imagens continuam a ser importantes e a ter uma grande força.” À sua procura pelas aparências sedosas e corpos banhados por luzes fortes e indefinidas, opôs-se, no começo da década de 90, uma fotografia mais terrena, com mais cheiro a sexo, algo que fosse capaz de espelhar o caos referencial do quotidiano (Ellen von Unwerth, Lindbergh e, mais tarde, Hedi Slimane).  

A curadora fala do percurso de Herb Ritts como uma caminhada em permanente equilíbrio (o título do catálogo que acompanha a exposição), um balanço na aparente contradição entre realizar imagens que espelhassem o seu tempo, um tempo pop, e os ideais da tradição pictórica e escultórica renascentista. As supermodelos, as estrelas rock, as celebridades de cinema e os corpos anónimos captados como figuras gregas, como humanos no monte sagrado Olimpo. Mas nem sempre exuberantes ou no máximo das suas forças. Como quando decide mostrar Elizabeth Taylor pouco depois de uma operação a um tumor no cérebro (“alguém que não perdeu a aura, uma certa vaidade, que aparece como uma escultura, não como uma pessoa que está a sofrer ou doente”) ou o “super-homem” Christopher Reeve de perfil em cadeira de rodas (“um deus do sofrimento”). “Ele tinha permanentemente uma enorme vontade de inventar relações, situações novas. Cada trabalho era uma espécie de alegre desafio. Gostava da tradição clássica e de fazer um trabalho simples, mas também procurava desafiar-se esteticamente. Se se olhar para todos os seus retratos percebemos que não há duas imagens com conceitos repetidos.”

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Sempre próximo dos materiais naturais (pele, cabelo, areia) e dos cinco Elementos da natureza, Ritts não queria ser entendido como um fotógrafo “retrógado” ou “ultraconservador” deixando exemplos de universos fotográficos “estranhos” de que se sentia próximo, como as fantasmagorias carnais de Joel Peter Witkin, o surrealismo de Man Ray ou mundos marginais de Diane Arbus. “Uma audácia misteriosa contrabalança o meu regresso ao classicismo”, dizia o Ritts que pode ser enquadrado na linha da fotografia metafísica de Herbert List (1903-1975), no classicismo elegante de George Hoyningen-Huene (1900-1968) e Horst P. Horst (1906-1999) ou ainda na fotografia arcadiana de Wilhelm von Gloeden (1856-1931), autores que cultivaram o mesmo fascínio pelo corpo humano.

Vinda de outras cidades europeias, a exposição no CCC está dividida em três grandes núcleos (Corpo, Retratos e África), tentando desfazer a ideia de que Ritts é “apenas” um dos fotógrafos que ajudou a construir uma nova figura na indústria da moda, a supermodelo, ou alguém que moldou parte da imagem dos anos 80 ligada ao universo pop da música e do cinema. Não fugindo desse universo (a fotografia das cinco supermodelos nuas faz parte da iconografia dessa década), Em Plena Luz revela um criador “refinado”, à prova do tempo, referencial. Como nota Alessandra Mauro, não é por acaso que quando morre algum dos grandes da música ou do cinema muitas publicações procuram as fotografias de Herb Ritts.

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