Quantas vezes terá Portugal de pedir desculpa?

Não inventem fantasmas nem despertem os demónios da oposição racial. E, de caminho, não nos contem histórias mal contadas.

Os que consideram que Portugal deve pedir desculpa pela antiga escravatura têm um argumento moral a que deitam mão quando todos os outros falham. Esse seu último reduto é o chamado argumento da humildade, que aparece com frequência em debates nas redes sociais e que costuma enunciar-se assim: “É verdade que a escravatura foi praticada em algum momento por quase todos os povos. É igualmente verdade que os africanos já escravizavam africanos antes de os portugueses chegarem a África. Mas isso desculpa-nos? Não devemos nós, portugueses, ser humildes, assumir o erro que cometemos e pedir perdão? Por que não?”

Quem argumenta assim sabe pouco de História. De facto, esta é uma linha de argumentação que vem pregar a convertidos. Eu já referi várias razões pelas quais, vendo as coisas com os olhos do presente, os olhos de 2017, não devemos pedir desculpa pela escravatura, muito menos de forma unilateral. Mas se recuarmos no tempo até ao século XIX, se nos situarmos nessa época, há curiosamente uma outra razão que é a de que isso já foi feito na altura. Os europeus e americanos do século XIX, aqueles que lidavam directamente com o problema, os que viviam no tempo em que havia tráfico de escravos e escravidão pura e dura, com propriedade sobre as pessoas e exploração muitas vezes desalmada do seu trabalho, tinham uma consciência muito aguda da dimensão e do horror da coisa, e tinham, igualmente, sentimentos de vergonha e de responsabilidade pela sua existência, pois estavam firmemente convencidos de que haviam sido os seus antepassados a criar aquela abominação. Sabendo pouco o que se passava no interior de África, viam os africanos e o próprio continente como vítimas passivas e inocentes da cobiça europeia. Sabemos hoje que não foi exactamente assim, isto é, que as autoridades africanas tiveram um papel muito activo no horrível negócio, mas, em geral, os europeus e americanos daquela época não o sabiam. Por isso penalizavam-se fortemente pela existência de práticas iníquas e erradas que vinham dos séculos anteriores, e consideravam que cabia ao Ocidente, custasse o que custasse, pôr fim a tais horrores.  

É devido a esse sentimento muito agudo de arrependimento e de injustiça, a essa muito forte autocensura moral, que no século XIX e de uma forma muito mais marcada do que acontecera em épocas anteriores, o tráfico passa a ser quase sempre adjectivado e referido como “infame”, “odioso”, “iníquo”, “desumano”, e o acto de contrição surge constantemente no que se diz e nos documentos oficiais. Um exemplo entre mil: no preâmbulo do decreto-lei de 10 de Dezembro de 1836, que aboliu o tráfico de escravos português e que, julga-se, terá sido escrito por Almeida Garrett, diz-se que “o infame tráfico dos negros é certamente uma nódoa indelével na história das nações modernas [...]. Emendar pois o mal feito e impedir que mais se não faça é dever da honra portuguesa”. Frases deste género foram ditas muitas dezenas de vezes nos debates parlamentares, foram escritas muitas centenas de vezes nos textos e jornais da época, estão nos preâmbulos das leis e decretos e nos artigos dos tratados internacionais. A mesma coisa se passou, aliás, em França, na Grã-Bretanha e nos outros países abolicionistas. Ou seja: os políticos e parlamentares que, através da sua acção, contribuíram para ir acabando a pouco e pouco com a escravatura, pediram desculpa pelo que julgavam ser uma culpa exclusivamente sua e fizeram-no nos termos em que isso era feito no século XIX. Como sugeriu, e bem, Marcelo Rebelo de Sousa, em Gorée, os legisladores e os Estados estão a pedir desculpa quando reconhecem o que há de injusto e condenável “no comportamento anterior” e emendam a mão. Pois bem, já foi feito repetidamente no século XIX.

Portanto, a pergunta que aqui quero fazer é a seguinte: quantas vezes mais precisam Portugal e os portugueses de se desculpar? Quantas vezes mais terão os países e povos ocidentais — que, importa lembrá-lo, foram os primeiros a censurar, ilegalizar e combater a escravatura — de voltar a percorrer esse corredor de arrependimento e penitência que já percorreram demoradamente no século XIX? Diz-se que, ao falar do passado, o que está em causa não é esse passado mas sim as injustiças presentes. Muito recentemente, o historiador brasileiro João José Reis formulou essa ideia com toda a clareza. Criticando aqueles que acham que não se justifica haver reparações materiais por causa do tráfico de escravos porque os negros também estiveram envolvidos nesse negócio, João José Reis afirmou: “Há que se fazer a reparação mesmo que nunca tivesse tido escravidão. Basta ter a desigualdade.” Bom, então importa dizer ao historiador brasileiro e aos que pensam como ele que a desigualdade é outro assunto, relativamente ao qual até poderemos ter vários pontos de convergência. Mas a África não precisa de pedidos de desculpa, que são, até, gestos paternalistas, como eram, no fundo, os que se faziam no século XIX. Precisa, isso sim, de não estar na mão de elites corruptas e atoladas até ao pescoço em negócios estranhos, para não dizer pior. Os africanos também não precisam de desculpas, mas de melhorar as suas vidas e de ser tratados com urbanidade e justiça, como qualquer cidadão. Nem mais nem menos.

Se os activistas e a ONU (que em 2014 lançou a Década dos Afrodescendentes) se preocupam com as comunidades de ascendência africana que enfrentam maiores dificuldades, isso é positivo e louvável, e deve merecer o contributo e a abertura de todos, por uma questão de entreajuda e de coesão e equidade sociais. Mas não apresentem as coisas em tom acusatório, revanchista ou de dívida histórica. O tráfico e a escravidão na bacia do Atlântico e no Novo Mundo existiram entre os séculos XV e XIX, e foram sendo ilegalizados e combatidos a partir de finais do século XVIII. O combate custou fortunas, durou décadas, sacrificou gente. Esse assunto está felizmente resolvido, da forma que foi historicamente possível resolvê-lo. Não inventem fantasmas nem despertem os demónios da oposição racial. E, de caminho, não nos contem histórias mal contadas. Guardem as energias para resolver os problemas do presente.

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