Uma aberração no poder local

Há um concelho cosmopolita, relativamente abastado, que se prepara para eleger um candidato condenado a pena de prisão por fraude fiscal e branqueamento de capitais.

Não bastavam os tradicionais cartazes inestéticos, as acções de campanha ridículas, as promessas indecorosas ou a troca de argumentos ordinários e velhacos para ensombrecer as perspectivas do próximo ciclo do poder local democrático: nestas eleições, há um concelho cosmopolita, relativamente abastado, com níveis de escolarização acima da média nacional que se prepara para eleger um candidato condenado a uma pena de prisão por fraude fiscal e branqueamento de capitais. A derrota expectável do discurso populista e xenófobo de André Ventura em Loures e o cartão vermelho que o eleitorado de municípios como Gondomar ou Matosinhos promete apresentar a dinossauros incapazes de perceber que, em democracia, a alternância é um valor, podem ajudar a compor o cenário. Mas, o simples facto de haver sondagens a apontar para o possível regresso de Isaltino Morais a Oeiras é a melhor homenagem que a vontade popular presta aos que consideram a democracia um expediente formal para a escolha de líderes, onde não cabem valores éticos nem há lugar para o mérito do exemplo.

Os autarcas, vistos tantas vezes de forma injusta por uma certa elite como uma cambada de broncos especializados no caciquismo e na alimentação de clientelas dispensavam um exemplo assim. O poder local, assumido pela Constituição e pela ciência política como o lugar onde a democracia melhor se realiza por causa da proximidade, não tinha necessidade de uma nódoa desta fealdade e desta envergadura. Já lhe bastavam os exemplos de autarcas condenados em outras marés. Já chegavam as histórias dos estádios do euro que não conseguem pagar, de casos de piscinas cobertas de três milhões de euros para uma população de 4000 habitantes como em Freixo de Espada à Cinta ou de novelas como a da biblioteca do Alandroal. Haver uma figura de projecção nacional que sai da cadeia, regressa à política e ameaça ganhar um concelho com a relevância de Oeiras torna estes casos em inocentes exemplos pitorescos, bem ao estilo do nosso país rural.

A ameaça de Isaltino é perigosa porque torna real a suspeita alimentada pela lamúria do cidadão comum quando diz que “são todos iguais”, que todos vão para o poder “para se governarem”, que, se roubarem, ao menos que façam alguma coisa. Oeiras não será o primeiro caso oficial da vulnerabilidade ética da República, mas ameaça tornar-se o mais exemplar. A sua projecção, ou a crueza dos factos lamentáveis que expõe, prometem alargar a fissura já existente na ética pública e política. O que outrora era um insulto impensável arrisca a converter-se numa normalidade rotineira. Isaltino já pagou na prisão os seus crimes contra a comunidade, mas se é um cidadão na plenitude dos seus direitos, falta-lhe o poder do exemplo que sempre foi um dos esteios da ética republicana. Se Oeiras eleger Isaltino, por que razão não há-de a vilória simpática da periferia tolerar as negociatas do presidente da junta ou da câmara concedendo-lhe um novo mandato? Se uma franja muito significativa de um eleitorado urbano e culto rasga assim de uma forma tão crua o código de valores democráticos tacitamente aceite nas últimas décadas, é porque esse código está decrépito e pode ser dissolvido.

Perante a gravidade do problema, seria tentador apoiar os que, como Luís Marques Mendes, defendem a proibição de candidaturas a cargos políticos por ex-condenados por crimes graves. Talvez essa seja uma solução, mas será sempre uma solução musculada que reforça o papel de bússola moral do Estado e do poder político e remete a cidadania para uma massa indolente e sem vontade – também por isso vale a pena esperar que a espinha dorsal dos oeirenses se reerga no domingo. Certo é que o regresso de Isaltino, de dinossauros populistas e de muitos outros ressabiados da política só acontece por causa das listas de independentes. Com raríssimas excepções, a maior parte dessas listas tornaram-se o alfobre onde cabem todos os detritos da política e muitas deploráveis histórias de vinganças, ódio tribal e intolerância democrática. Nenhum partido decente correria o risco de aceitar uma candidatura como a de Isaltino Morais. Ele é um activo tóxico que só uma franja da classe média lá da terra parece aceitar como bom.

2. Casos como o de Oeiras são daninhos também porque obscurecem a realidade profunda do poder local. A que merece elogio e apoio. Num dos países mais centralizados e centralistas do mundo desenvolvido, o olhar sobre a democracia na província ainda se faz com excessivo desdém ou, no máximo, de condescendência. No entanto, para lá da caricatura, do preconceito (e dos casos pontuais de desperdício e de corrupção), o poder local tem muitas lições a dar ao país. Muitas lições de probidade, de dedicação, de trabalho feito, de preocupação social, de responsabilidade financeira e, principalmente, de eficiência no uso dos recursos públicos. Lições que tornam o caso de Oeiras numa aberração.

Compare-se o desempenho das autarquias com o do Estado central: nos anos de chumbo do ajustamento, entre 2010 e 2016, as câmaras municipais reduziram o seu endividamento em 38%, passando o seu passivo financeiro de mais de oito mil milhões de euros para cerca de cinco mil milhões. Em 2011 havia 185 autarquias a pagar aos seus fornecedores em 90 dias ou mais; no ano passado eram apenas 51. Em 2016, as suas receitas próprias representavam 40,5% das receitas totais, contra 34% uma década antes. As suas despesas situavam-se em 7,4 mil milhões de euros, menos do que a média entre 2006 e 2010. E, corolário do seu sucesso e da sua eficiência, as câmaras, que são responsáveis por 11,8% da despesa pública (26,6% na União Europeia) realizam 45,9% de todo o investimento público do país. Um escudo gasto pelas autarquias vale três escudos gastos pela administração central, dizia em tempos Valente de Oliveira. Ainda hoje é assim.

Se a administração central fosse capaz de apresentar estes resultados, há muito que o espectro da crise teria sido afastado. Bem sabemos que uma comparação entre a actividade dos municípios e a do Governo central não pode nem deve ser feita de modo linear, mas o exercício torna-se indispensável quando se nota que as câmaras foram muito para lá dos Governos no empenho em cortar despesas, em reduzir funcionários (de 134 mil em 2009 para 121 mil em 2016) e em amortizar dívidas. Para quem tem a ideia que o mundo dos autarcas é um pântano de despesismo e de irresponsabilidade, os números impressionam. Para quem desconfia que a descentralização do poder, como a que o Governo anunciou, é sinónimo de ineficiência e de irresponsabilidade, os resultados só podem espantar. Por outras palavras, o centralismo exacerbado do país ajuda-nos a entender as ineficiências do Estado e a descobrir uma das causas que levaram Portugal a ter de se sujeitar por três vezes desde o 25 de Abril ao vexame da ajuda externa.

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