Os cozinheiros andam a brincar com o fogo

Um jantar (quase) à luz da fogueira no meio de uma horta. Ljubomir Stanisic, João Rodrigues e Manuel Maldonado a cozinhar “sem rede” no Sublime Comporta.

Neste jardim gastronómico, há fogo que arde para se ver (e comer) Alexandra Prado Coelho, Sibila Lind

No início é o fogo. É assim desde que o Homem começou a cozinhar os alimentos. “Esta relação do Homem com o fogo é a base de tudo”, diz João Rodrigues, chef do restaurante Feitoria, em Lisboa. “Uma das coisas que mais gosto e tento preservar na minha cozinha é o produto quase sem alteração e o fogo. Dá um lado humano. Quando tornamos tudo muito limpinho, muito direito, muito electrónico, as coisas perdem a piada.” 

João foi o mais recente chef convidado por Ljubomir Stanisic para dançar à volta da fogueira no seu Food Club do hotel Sublime Comporta. Conversamos com ele horas antes do início do jantar, no meio da horta que Ljubo, chef consultor do Sublime, criou em redor, com a ajuda de Graça Saraiva, das Ervas Finas.

Uma das coisas que atrai João Rodrigues nesta cozinha fora de um restaurante convencional – apenas doze lugares à volta de um Ofyr (grelhador com o fogo no meio e chapa à volta) onde se vai controlando o lume conforme o que se precisa – é a possibilidade do erro. “O risco é fazer as coisas na hora, sem bengalas, coisas que se possam safar na altura. O fogo é a base disso, perdermos esse lado era uma tragédia. Hoje é muito fácil abrir uma cozinha, comprar máquinas, cozinhar com temperaturas e tempos exactos. Sai tudo sempre igual, mas retira o lado do erro, que é fascinante. É a mesma coisa que ver um trapezista com ou sem rede. Quando não está lá a rede estamos todos muito mais atentos ao que se está a passar.”

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E o que se passa aqui é um jantar – que além de Ljubomir e João Rodrigues junta também o chef executivo do Sublime, Manuel Maldonado – que começa com carabineiros no fogo para  se aproveitarem não só os lombos mas os deliciosos sucos das cabeças, que são desidratadas e servidas à parte.

E segue por ali fora, com ostras com camarinhas da costa e salicórnia, gaspacho de morangos com sardinha e vinagre de vinho tinto, tártaro de lírio dos Açores com pepino queimado e caldo de sargaço, cabeça de xara que Ljubomir faz com “porco, vaca, cabeças, bochechas, testículos, rins e fígado de pato”. O pão é levado às brasas e chega-nos aos pratos quente – é muito difícil parar de o comer com manteiga. Mas vem a sarda braseada numa sopa feita, entre outras coisas, com as entranhas do peixe.

Ostras com camarinhas e salicórnia em molho nage Sibila Lind
Gaspacho de morango com sardinha e vinagre de vinho tinto Sibila Lind
Sobremesa de mistura de ervas amentoladas e anizadas da horta do Sublime Sibila Lind
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Ostras com camarinhas e salicórnia em molho nage Sibila Lind

“Adoro entranhas”, vai contando Ljubomir aos presentes, enquanto dança à volta do fogo e controla a playlist que está a tocar. “Posso servir o próximo prato?”, pergunta João. “Sim, chef!”, grita Ljubo. Vão sendo servidos diferentes vinhos para acompanhar cada prato e entre os doze clientes o gelo começa a quebrar-se e as conversas vão surgindo. Chega a raia com esmagada de batata e alho e vinagrete de alcaparras, um pregado com lingueirão e amido de arroz, uma carne maturada feita nas brasas com alface também grelhada. E as sobremesas, uma com ervas da horta, misturando as mentoladas com as anizadas, e outra à base de eucalipto, pinheiro e pinhão.

Ljubo fala da horta que está à volta do Food Club e que entretanto mergulhou na noite e só se adivinha pela luz das velas que guiam o caminho. Explica que nasceu da história do João Pé de Feijão, que troca a vaca que era o único sustento da família por feijões mágicos. São esses feijões que servem de canteiros aqui.

E, em redor deles, outros canteiros redondos com ervas de cheiro de várias famílias, plantadas e organizadas por Graça Saraiva. Algumas delas já conseguiram completar um ciclo de vida na Comporta, explica a criadora da Ervas Finas (projecto nascido em Trás-os-Montes e que chega agora ao Sul do Tejo) e por isso já é possível recolher sementes e ter plantas nascidas e criadas aqui.

Tudo isto tem a ver com a sustentabilidade, tinha-nos explicado Ljubomir antes do jantar. “Isto que temos no Food Club não é um plano de negócio, é um divertimento, uma cozinha descontraída, que promove o hotel, a região, os cozinheiros. Convido amigos para cozinhar, falo com produtores da região, eles mandam os produtos, é isso.”

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Matar animais e outras polémicas

O que percebeu desde que chegou à Comporta é que há produtores muito interessantes na região que não são devidamente aproveitados. “Estamos numa zona de agricultura e há um potencial aqui que não está a ser aproveitado. O maior produtor de vegetais exporta tudo para França. Não nos fornecem porque não têm transportes para aqui, têm para o aeroporto, por isso mandam tudo para fora. Acho que devíamos pensar um pouco nisto. O que é produzido na nossa região devia ser consumido também na nossa região. Não faz sentido apoiarmos o trabalho de exportação dos produtores e depois termos que importar coisas. Perdemos aqui um ciclo importante, que está na altura de preservarmos.”

Ljubomir ainda está a digerir a polémica que causaram as suas declarações ao Expresso sobre o prazer que tem em matar um animal, dando-lhe uma morte digna e fazendo-lhe festas enquanto o sangra. André Silva, deputado do PAN (Pessoas, Animais, Natureza) chamou-lhe “psicopata”.

O chef não resiste a voltar ao assunto. “Posso? Isto vai ser polémico”, avisa. “Quando digo que me dá gozo dar uma morte digna aos animais, é porque me dá mesmo gozo. Olhar para um animal, depená-lo, cortá-lo no sítio certo, se tem cartilagem onde tem cartilagem, se tem osso, onde está o osso. Com dignidade, calma, lentidão. Pode parecer chocante mas é uma morte mais humana, como deve ser. As pessoas sabem como é que os animais são mortos, com choques eléctricos, todos os dias? Quando vão ao supermercado e têm numa prateleira milhares de patos ou de frangos, são todos mortos com choques eléctricos. Gosto de ver uma galinha com a cabeça cortada porque sei que ela sangrou primeiro, não estrebuchou ali com um choque eléctrico, que a abalou no interior, e nós a alimentarmo-nos disso, adrenalinas puras, coisas que nos fazem mal à saúde.”

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Mas, perguntamos, não há um lado elitista em tudo isto? Comer saudável, animais criados ao ar livre, comida biológica, não é mais caro e, por isso, inacessível para muitos? “Os supermercados bio não são para toda a gente. Claro que não”, reconhece Ljubo. “Quem tem o salário mínimo não vai comprar um pão por quatro euros quando pode comprar um por 40 cêntimos. Mas os cereais naturais são baratos, um quilo de sementes de linhaça ou de abóbora é muito barato e pode-se fazer o pão em casa.”

O que é preciso é “usar a criatividade”, defende. E também há muita informação incorrecta. “A soja, por exemplo, é um dos piores produtos que podemos comer. E os cartéis do México viraram-se para os abacates porque são um negócio mais rentável do que a cocaína. Há seis anos um abacate custava 70 cêntimos, hoje custa 4,5 euros. O que é que se passou com o abacate? É surreal.”

Acredita, por isso, que não é preciso comer abacate e bagas goji para ser saudável. “A minha avó viveu [na antiga Jugoslávia] até aos 90 anos e andou de bicicleta até ao último dia da vida. Nunca a vi ir ao supermercado. Comia o que plantava, alimentava o porquinho a maçãs e matava-o com gosto, a chorar porque amava aquele porco, mas tinha que nos alimentar. Esta história é linda, viveu super saudável e não foi com bagas goji e tofu, comeu o que plantou. Morreu feliz. Super-alimentos comerciais? Não acredito nisso.”  

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