Robert Delpire (1926-2017), o editor que deu vida à fotografia em livro

Era um dos nomes fundamentais na edição e divulgação em livro da obra dos grandes mestres da fotografia do século XX. Com Robert Frank fez nascer o seminal The Americans e criou a Photo Poche, colecção de livros de fotografia referencial.

Robert Delpire, à direita na imagem, durante a inauguração da exposição retrospectiva que a Maison Européenne de la Photographie de Paris lhe dedicou em 2009
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Robert Delpire, à direita na imagem, durante a inauguração da exposição retrospectiva que a Maison Européenne de la Photographie de Paris lhe dedicou em 2009 Daniel Hennemand/Licença de Creative Commons 2.0 Generic
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Páginas de Les Américains, de Robert Frank, que Delpire editou em 1958 DR
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Delpire com a fotógrafa Sarah Moon, sua companheira, nos Encontros de Fotografia de Arles, em 2009 Katherine Hala/Licença de Creative Commons 2.0 Generic

Morreu Robert Delpire, o editor francês que, ao longo da segunda metade do século XX e início do XXI, passou para livro o trabalho de muitos dos grandes nomes da fotografia mundial e que criou a mais famosa e reconhecível colecção de livros de fotografia destinados ao grande público, a Photo Poche, que conta com mais de 150 títulos. De acordo com a AFP, Delpire morreu na noite de segunda para terça-feira na sua casa em Paris. Tinha 91 anos e, para já, não são conhecidas as causas da sua morte.

Para além de editor, foi curador, galerista, produtor de cinema, director de arte de revistas, consultor, director criativo de agências de comunicação e publicidade e designer gráfico. A quantidade e multiplicidade actividades a que se dedicou é surpreendente. Mas foi sobretudo no campo da edição de fotolivros que Robert Delpire mais se destacou. "Poucos editores na história da fotografia tiveram uma marca tão duradoura na publicação de livros que hoje são considerados como referências como Robert Delpire", escreveu Jeffrey Ladd, fotógrafo, escritor, editor, fundador da Errata Editions e um especialista no campo da edição de livros de fotografia. Num texto escrito para a revista Time em 2012 a propósito da exposição A Tribute to Robert Delpire through the work of Robert Frank, Lee Friedlander, Josef Koudelka, Duane Michals and Paolo Roversi, na Pace/MacGill Gallery de Nova Iorque, Ladd nota que o percurso profissional de Delpirre foi tão variado quanto os livros que publicou.

Encantado desde criança com as obras de Júlio Verne publicadas pela Hetzel, é comum associar-se Robert Delpire a um olhar muito particular e a uma capacidade de escolher entre muitas as fotografias que melhor serviam os propósitos dos autores. As muitas décadas em que lidou com a fotografia em vários campos garantiram-lhe a resiliência como virtude. A essa capacidade de superar adversidades e de seguir em frente somam-se outros elogios. "Temos dito que tinha um olhar sagaz, o que é indesmentível, mas tinha antes de tudo carácter, e isso é que o distinguia", escreveu num depoimento Christian Caujolle, comissário independente, antigo director de fotografia do jornal Libération, fundador da Agence e da Galerie VU', professor, escritor e dinamizador da cena fotográfica.

Foi enquanto estudante de medicina que Robert Delpire começou a publicar fotografia em 1950, aos 23 anos, como director da Neuf (que significa "nove", mas também "novo"), uma revista cultural criada pela Maison de la Medicine e financiada por laboratórios da indústria farmacêutica. Em números com periodicidade irregular enviados por subscrição para médicos ligados àquela instituição, mostrou aqui imagens de nomes ainda pouco sonantes como Henri Cartier-Bresson, Robert Doisneau e um nome desconhecido: Robert Frank. Terá sido esta experiência que o despertou para o poder da imagem fotográfica impressa em página de revista ou livro. Dois dos números deste boletim/revista de ensaio visual assumem, segundo Ladd, um verdadeiro carácter monográfico: o Neuf #5, com trabalho de Brassaï, e o Neuf #7, com imagens de Frank.

Ainda antes de fundar uma editora em nome próprio, aventurou-se na Huit, pela qual publicou os primeiros títulos monográficos (já não disfarçados de revista), entre os quais Les Parisiens tels qu'ils sont (1954), de Robert Doisneau, Les Danses à Bali (1954), de Cartier-Breson, e Le Village des Noubas (1955), de George Rodger. Ladd nota nestes títulos ("ensaios de teor documental encapsulados em três livros de pequeno formato que parecem estudos sobre a humanidade") os primeiros sinais da influência pela antropologia, interesse que viria a revelar-se na escolha de muitas outras obras no decorrer da sua longa carreira.

Delpire & Co, sinónimo de imagem 

Em 1955, fundou a Delpire & Co, que mais tarde viria a chamar-se Éditions Delpire, chancela que deu vida, entre outros, a The People of Moscow, de Cartier-Bresson, Fiesta in Pamplona, de Inge Morath, ambos em 1955. Com esta chancela, alicerçada na imagem, criou uma colecção de cultura geral chamada Encyclopédie Essentielle, livros de forte pendor gráfico e capas com design arrojado (uso de recortes, reenquadramentos e tipografia muito variada). 

Em 1958, quando ninguém parecia interessado num género de fotografia instintiva, pouco objectiva e "vagabundante" como a que o suíço Robert Frank praticou durante uma road-trip por uma América mergulhada no macarthismo a fervilhar com teorias da conspiração e listas negras, Robert Delpire decidiu arriscar a publicação daquele que viria a ser um dos títulos mais marcantes de sempre da história da imagem, Les Américains (The Americans), de Robert Frank, o quinto volume da série Encyclopédie Essentielle. Depois de duas bolsas da Guggenheim Memorial Foundation (com a ajuda decisiva de Walker Evans), dezenas de estados atravessados, 767 rolos de película gastos e muitos milhares de quilómetros percorridos ao volante de um Ford Business Coupe, a primeira parte da viagem solitária de Frank terminou em 1956. A segunda parte, também solitária, envolveu um aturado trabalho de edição para chegar a uma sequência de 92 imagens e à maquete daquele que viria a ser a sua obra-prima, o fotolivro que através de um olhar (e de uma atitude) poética e subjectiva nos mostrou uma América pouco vista, profundamente dividida, radical e segregacionista.

Esta deambulação sem filtros ou preconceitos por um país que vivia carregado deles, tornou mais difícil a tarefa de Frank de transformar em livro aquilo que vira e experienciara. A sua prática fotográfica desligada do cânone não encontrou interlocutores nos EUA, até chegar aos olhos de Delpire, em França. Juntos, com Les Américains, haveriam de "estilhaçar" a falculdade de "testemunhar objectivamente" atribuída à fotografia. O livro (que acabou por ser publicado nos EUA em Janeiro de 1960) não foi um sucesso imediato, mas nos anos seguintes haveria de mudar não só a forma como a América se via, como muitas práticas em torno da fotografia, sobretudo no campo da edição de fotolivros. "A sua obra não é um discurso, é um grito", escreveu Delpire. Num excerto citado pelo Libération, o editor revela a sua modéstia e confessa-se surpreendido pelo alcance da obra: "Nunca Robert Frank ou eu imaginamos que estaríamos a fazer um livro de culto em 1958. E não tenho a certeza se gosto desta expressão. Sou cauteloso em relação a fórmulas e religiões."

Com uma sequência final de 83 fotografias (uma por cada dupla página, à excepção de imagens vindas da mesma prova de contacto), Les Américains foi publicado em confronto com textos de uma verdadeira constelação de estrelas da literatura: Simone de Beauvoir, Erskine Caldwell, William Faulkner, Henry Miller e John Steinbeck. A capa foi concebida a partir de um desenho original de Saul Steinberg, ilustrador que trabalhava para a New Yorker. Aliás, esta proximidade com os principais vultos intelectuais do seu tempo haveria de ser uma constante no percurso de Delpire, tendo convocando frequentemente os escritos de nomes como o do poeta, crítico e ensaísta Yves Bonnefoy, o do escritor, poeta, professor e filósofo Michel Deguy, o do escritor, filósofo e crítico Jean Paul-Sartre ou o do romancista e académico Erik Orsenna.   

O homem dos sete ofícios

No início da década de 1960, Robert Delpire - que adorava organizar herbários e que, segundo Caujolle passou os últimos dois anos a "finalizar" alguns deles - abriu uma galeria em Saint-Germain-de-Prés, onde mostrou fotografias e livros publicados pela sua editora. Por esta altura, o seu olhar sensível e apurado e a sua veia gráfica atiram-no para a direcção artística da revista mensal de artes l’Œil (que ajudara a fundar), experiência que durou oito anos e que o levaria depois para a Nouvel Observateur com a mesma função. Apenas um ano após o lançamento desta revista de actualidade, Delpire foi encarregado de mudar toda a maquete, sobretudo a capa. O seu trabalho foi um sucesso e fez com que a Obs "fosse reconhecida de longe nos quiosques". "As vendas descolaram", garante Serge Ricco no obituário que assina no Obs.

Com a chancela do Nouvel Observateur criou ainda, em 1977, o Spécial Photo, um suplemento de grande formato pensado para venda em quiosque que deixou marca na história da edição ligada à fotografia, tendo em conta a qualidade da iconografia (de Lewis Caroll a Diane Arbus, de Disfarmer a Richard Avedon) e dos ensaios escolhidos (Susan Sontag, Claude Roy, Julio Cortázar, Pierre Gascar e Michel Tournier). O número oito desta série, com o título Tout, foi editado pelo próprio Delpire, que juntou imagens de Raymond Depardon, Michael Ackerman, Roger Ballen, Lisette Model, Alexandre Rodtchenko e Shoji Ueda aos textos de Dominique Eddé, Sylvain Roumette, Jean-Luc Nancy, Arlette Farge, Marc Augé e Laurent Gaudé.

Em conjunto com a fotógrafa de moda Sarah Moon, que se tornou sua companheira, Delpire editou inúmeros fotógrafos. Para além do seminal Les Américains há um conjunto de títulos que formam a espinha dorsal da expressão fotográfica neste meio. Jeffrey Ladd cita alguns deles: Gitans La Fin du Voyage (1975) e Exiles (1988), de Josef Koudelka, D'une Chine à l'Autre (1954) e Moscou (1955), de Henri Cartier-Bresson, Guerre à la Tristesse (1955) e De la Perse à l'Iran (1958), de Inge Morath, Tokyo (1964), William Klein, e Indiens pas Morts (1956), com fotografias de Werner Bischof, Robert Frank e Pierre Verger.

Com Klein, produziu ainda um documentário sobre o pugilista Muhamad Ali (Cassius le Grand, 1964) e a sátira sobre o mundo da moda Qui êtes-vous, Polly Maggoo? (1966). Como realizador, assinou Flagrants Délits, um filme de 38 minutos sobre a obra de Cartier-Bresson. Dirigiu também a celebrada série Contacts (1989–2004), pequenos documentários de 14 minutos sobre o trabalho de 36 fotógrafos, que revelam muitos pormenores da sua prática. 

Para além do trabalho de edição, em alguns casos Delpire envolveu-se pessoalmente na fase de produção, como quando acompanhou Morath, fotógrafa da Magnum, pelo Irão. Um comunicado da cooperativa publicado após a morte do editor francês destaca algumas das obras que envolveram os seus autores como Juste un flou, de Robert Capa, Des Images et des Mots (2004), de Henri Cartier-Bresson, Sur la Route des Esprits (2005), de Abbas, Les Allemands (1963), de René Burri e Made in Belgium (2000), de Harry Gruyaert. Em muitos destes livros criou "récitas fotográficas" e mostrou como "um ponto de vista se pode transformar em narração" (Caujolle).

Encarnação do homem dos sete ofícios, Delpire, nascido em Paris em 1926, fundou também, em meados dos anos 50 (com a ajuda de Claude Puech) uma empresa de comunicação e publicidade, que trabalhou para marcas e empresas internacionais como a Citroën (durante 15 anos) e a L'Oréal. Com a cumplicidade de tipógrafos como Herb Lubalin e artistas como Sarah Moon e Helmut Newton ajudou a conceber imagens de marca que permanecem no mercado, como o logótipo da Cacharel e dos perfumes Anaïs Anaïs e Loulou, do grupo L'Oréal. Foi graças ao sucesso dos seus negócios na publicidade que Delpire garantiu as condições para editar alguns dos seus livros de sonho, de grandes nomes como Koudelka ou Cartier-Bresson.

Delpire destacou-se ainda no campo da edição de livros para crianças, com a fundação da Idéodis, chancela com dezenas de títulos ricamente ilustrados, entre os quais a primeira tradução para francês do clássico Where the Wild Things Are, do escritor norte-americano Maurice Sendak.

Em 2009, a Maison Européenne de la Photographie e os Encontros de Fotografia de Arles organizaram uma exposição retrospectiva da sua obra, Delpire & Co, que foi inaugurada em Arles antes de viajar para Paris e Nova Iorque. Num artigo a propósito dessa viagem ao passado escreveu: "O trabalho de um editor é mostrar o trabalho dos outros. Não é apenas um trabalho de equipa; requer um entendimento mútuo profundo. Nunca publiquei ninguém que não tivesse interesse para mim." Depois do convite de François Hébel e Jean-Luc Monterosso, director e presidente dos Encontros, Delpire disse "não": "É perigoso andar para a frente a olhar para trás". Mas depois de ter falado com muitos amigos reconsiderou. “Percebi que esta retrospectiva podia dar-me a oportunidade de agradecer aos autores e aos actores desta aventura apaixonante que é a edição. Poderia louvar os talentos dos meus amigos artistas e cumprimentar meus amigos artesãos que garantem sua permanência no tempo.” 

"Edito, logo vivo"

Apesar da idade avançada e de ter reconhecido que já não tinha "muito tempo" e que se sentia "muito cansado", continuou activo no seio da Delpire Éditeur, agora propriedade do grupo independente Libella, chancela que publicou este ano C´est de voir qu'il s'agit, livro organizado por Michel Christolhomme segundo a ordem do abecedário, que reúne alguns dos seus textos sobre fotografia, sobre fotógrafos e sobre os mais diversos aspectos da edição de fotolivros. Para entrada da letra escolheu o verbo "ver", a palavra que, de forma desarmante e despretensiosa, talvez resuma melhor a sua actividade de quase sete décadas a trabalhar com a fotografia e com a imagem em sentido lado e muito para além da página impressa. "Não tenho os olhos cansados. Uma sorte", confessou nesta obra "tocante e apaixonada", segundo a descrição do Libération. Num obituário assinado por Clémentine Mercier, sublinha-se, para além da mestria na concepção de livros de fotografia, o valor dos seus textos, "de um rigor e de uma simplicidade luminosos" – ensaios onde "martelou" não só na "necessidade de aprender a ver", mas também na importância de "reaprender a ver". O Libé lembra ainda "a urgência absoluta" que para ele tinha a reflexão sobre a imagem. 

Para Delpire, a edição era uma artesania que lhe servia de combustível para viver. "Edito, logo vivo. Tenho o mesmo prazer que tinha há décadas na criação de livros e na concepção de exposições", disse em 2012, no momento em que a sua editora passou para as mãos da Libella. Sobre o seu conceito de edição e o capital de confiança que ganhou com os fotógrafos: "Um editor não é um artista. Um editor é um artesão. Está ao serviço do autor. Fazer um bom livro de fotografia não é fazer um bom livro para si, mas para o autor."

Dos livros para o museu

Para além do seu intenso trabalho como editor, Robert Delpire fundou em 1982, a convite do então ministro da Cultura francês Jack Lang, o Centre National de la Photographie (CNP), em Paris, que viria a ser rebaptizado como Galerie Nationale du Jeu de Paume, que é hoje um dos espaços de referência na produção de exposições de fotografia na Europa e uma das instituições que mais contribuiu para a valorização da fotografia em contexto museológico. Foi enquanto director do CNP que criou a famosa colecção de pequenos livros de capa preta, a Photo Poche, que democratizou o livro de fotografia e deu a conhecer centenas de autores vindos de todos os quadrantes criativos, da mais clássica tradição documental à fotografia anónima ou ligada às belas-artes. Revolucionária, barata e profundamente eclética, esta série foi várias vezes distinguida ao mais alto nível (Prix Nadar, em 1984; ICP Infinity Award, em 1985). “Mais do que editar grandes catálogos como é habitual fazer em manifestações ditas museológicas, prefiro livros pequenos, um formato com virtudes inesgotáveis”, escreveu no texto da exposição retrospectiva da sua obra. 

A escritora, editora e jornalista especializada em fotografia do Financial Times Liz Jobey descreve a Photo Poche como a "mais bem sucedida colecção de livros de fotografia de sempre": monografias que "iniciaram e ajudaram a formar sucessivas gerações". Uma constatação que Jeffrey Ladd também partilhou: "É difícil uma biblioteca de fotografia não ter uma selecção destes livros de capa preta." Só o segundo número desta colecção, dedicado à obra de Cartier-Bresson, terá vendido mais de 400 mil cópias. "[A Photo Poche] É o sonho de biblioteca ideal de fotografia", escreveu Caujolle, para quem esta era a "grande obra" de Robert Delpire. Na mensagem de despedida que lhe dedicou, e "para lhe dizer adeus" o reputado curador francês lembra, no entanto, um livro da casa Delpire que nada tem a ver com fotografia, "uma pequena maravilha" vinda do universo da literatura para crianças: Les larmes de crocodile (1955), de André François. Com a saída de Delpire do CNP, em 1996, a Photo Poche passaria para o controlo da Nathan e, em 2004, para a Actes Sud.  

No que diz respeito à criação de condições para a produção de trabalhos originais de autores conceituados, Delpire ajudou a fundar, em 1988, o Henri Cartier-Bresson Award, que já financiou trabalhos de, entre outros, Chris Killip, Josef Koudelka, Larry Towell, David Goldblatt ou Patrick Faigenbaum. Ainda ligado ao fotógrafo francês, Robert Delpire esteve também na criação da Fundação Henri Cartier-Bresson, da qual foi firector durantes anos e conselheiro até à sua morte.

Comissariou mais de 150 exposições temáticas (Identidade, Botânica, Vanités...) e monográficas (Irving Penn, Robert Frank, William Klein...) que deram a volta ao mundo.

Entre as inúmeras distinções que recebeu ao longo da vida, destaca-se o International Center of Photography Infinity Award for Lifetime Achievement, atribuído em Nova Iorque, em 1997, pelo conjunto da sua obra relacionada com a fotografia.

A Galeria Folia de Paris programou a partir de Dezembro de 2017 uma exposição que abordará a importância da sua obra editorial.

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