Referendo curdo pode fazer explodir o Iraque

Ter um Estado independente é uma ambição secular do povo curdo. A consulta popular convocada por Massoud Barzani não torna esse sonho mais próximo, mas pode desestabilizar ainda mais a região.

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Manifestação pela independência do Curdistão em Erbil (IRaque) GAILAN HAJI/EPA

No referendo sobre a independência do Curdistão iraquiano que Massoud Barzani promete realizar esta segunda-feira, contra a oposição de quase todos os aliados, o que está verdadeiramente em causa nem é a criação de um Estado independente para este povo. O presidente desta região autónoma do Norte do Iraque pretende por um lado assegurar a sua sucessão e, por outro, reforçar a posição negocial do Curdistão iraquiano com Bagdad.

Se o Curdistão declarasse a independência, estilhaçando a unidade territorial do Iraque, seria o início de uma nova crise de grandes proporções. Podia ser o princípio da próxima guerra no Iraque, diz a revista The Economist, pois as relações entre o Iraque e os países vizinhos, onde vivem significativas minorias curdas, “complicar-se-iam enormemente”, temendo um efeito de dominó, disse à CNBC Michael Stephens, investigador do Royal United Services Institute. “As interferências regionais aumentariam a tensão e poderiam ser o gatilho de um conflito”, considerou.

A Turquia, que tem a maioria população curda, vê com preocupação estes desenvolvimentos, apesar de ter desenvolvido uma extensa relação comercial com o Curdistão iraquiano – os pipelines que transportam o petróleo curdo chegam ao mar na Turquia. O Presidente turco, Recep Erdogan, lançou vários alertas contra a realização do referendo, temendo que reforce as ambições de independência dos curdos do Sudeste da Turquia, onde há mais de 30 anos o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), considerada uma organização terrorista, lidera uma guerrilha independentista.

A guerra na Síria permitiu que os curdos do Noroeste do país se organizassem como uma entidade autónoma, Rojava — para todos os efeitos, independente — que tem servido como apoio e inspiração para os curdos turcos. Ali é aplicado o novo projecto de “confederalismo democrático” desenvolvido pelo líder do PKK, Abdullah Öcalan, preso desde 1999 na Turquia. A ideia básica é rejeitar tanto as estruturas tradicionais da sociedade turca como do Estado moderno.

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A criação de um Estado independente é uma ambição de longa data dos curdos, tem pelo menos um século, desde o fim da I Guerra Mundial quando as potências vitoriosas redesenharam o mapa do Médio Oriente e deixaram este povo de cerca de 30 milhões de pessoas espalhadas por quatro países — Turquia, Iraque, Síria e Irão — e sem um Estado a que pudessem chamar de seu.

No Norte do Iraque, os curdos foram brutalmente tratados por Saddam Hussein. Só em 1980, numa campanha no final da guerra contra o Irão, terão sido mortos 50 mil curdos. Em 1988, houve um massacre em que foram usadas armas químicas pelo regime iraquiano contra os curdos. Em 1992, os Estados Unidos estabeleceram uma zona de exclusão área no Norte do Iraque, após a I guerra do Golfo, para protecção do Curdistão iraquiano — esta é a origem da região autónoma criada após a invasão do Iraque em 2003 que afastou definitivamente do poder Saddam.

Provocação para Bagdad

A pergunta submetida a votação nesta segunda-feira é uma provocação para Bagdad. “Quer que a região do Curdistão e as áreas curdas fora da administração da região se tornem um Estado independente?” Estas áreas incluem Kirkuk, a cidade numa rica zona petrolífera, de que os peshmerga (guerrilheiros) curdos iraquianos se apoderaram em 2014, depois de o exército iraquiano ter fugido ao enfrentar o avanço dos combatentes jihadistas do Daesh. Esta anexação expandiu o território curdo em cerca de 40%

Bagdad tem exigido repetidamente que as forças curdas se retirem de Kirkuk, uma cidade multicultural – ali vivem árabes, curdos e turcomanos. Não só não se retiraram, como construíram uma gigantesca estátua de um peshmerga à entrada da cidade, relata The Guardian.

“Mas o referendo de 25 de Setembro não pode tornar o Curdistão iraquiano num Estado independente, seja qual a participação ou o resultado, porque é uma votação apenas carácter consultivo”, escreveu Maria Fantappie, especialista em Iraque do think tank International Crisis Group. “As motivações para fazer o referendo têm mais a ver com a política interna curda e as relações a longo prazo com Bagdad do que as aspirações nacionais imediatas curdas”, explica.

“Isto não é um verdadeiro referendo”, disse ao Guardian Alan M. Noory, um professor curdo de ciências sociais na Universidade Americana de Sulaimani, no Curdistão iraniano. Apesar de ser a favor da independência, garante que não vai votar. “É um insulto à democracia”. Só vai servir para romper relações com os EUA e Bagdad, num momento crítico, afirma.

Ao agitar os fantasmas do nacionalismo, que preocupam os governos da região e os Estados Unidos, que têm tido nos curdos um aliado para combater o Daesh – e que se manifestaram de forma veemente contra a realização do referendo, que pode pôr em causa a luta contra o Daesh –, Masoud Barzani “espera silenciar os dissidentes e forçar a oposição a seguir a sua linha”, diz Fantappie.

O referendo serve também para desviar as atenções dos 20 mil milhões de dólares de dívida da região autónoma, agravados pela descida dos preços do petróleo. A crise foi agravada desde que Bagdad deixou, em 2014 - quando o Daesh conquistou uma grande parcela territorial do país -, de pagar a totalidade dos ordenados dos funcionários públicos curdos.

O jogo de Barzani

Barzani, de 71 anos, é presidente da região autónoma do Iraque desde 2005, e líder do Partido Democrata do Curdistão (KRG) desde 1979, sucedendo ao seu pai. Mas já excedeu o seu mandato, que terminou em 2013: teve uma autorização excepcional do parlamento para ficar mais dois anos, que também ultrapassou. Em 2015, quando um partido da oposição tentou investigar os negócios e abusos de direitos humanos de que é acusada a sua família, fechou o parlamento em Erbil, a capital do Curdistão curdo.

Estão marcadas novas eleições para 1 de Novembro.  Barzani garante que não se recandidatará e que se opõe a que um membro da sua família o faça – apesar de o seu sobrinho, Nechirvan, ser primeiro-ministro, do seu filho, Masrour, liderar o Conselho de Segurança Regional do Curdistão, e de ter posições predominantes no partido e em vários serviços de segurança.

No Iraque estão também previstas eleições legislativas, em Abril ou Maio de 2018 – e nenhum primeiro-ministro está disposto a ficar para a História como aquele que deixou que o Iraque se desfizesse. É com o próprio fogo que Barzani está a jogar.

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