Uma meia vitória para a democracia alemã. Ou uma meia derrota?

A entrada da extrema-direita no Bundestag terá outro efeito negativo: aumentará as tensões internas num país cujo sistema político foi desenhado para forçar os consensos e impedir a concentração do poder.

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1. Se levarmos em conta o que se passa em muitas democracias europeias, a Alemanha ainda consegue manter alguma normalidade. Mas apenas alguma. O que os resultados desta eleição nos dizem é que o centro não desabou, mas caiu acentuadamente. Merkel ganhou com uma votação abaixo do pior cenário das sondagens. Ganhou e perdeu, ao mesmo tempo. A sua estratégia de “chapéu-de-chuva”, debaixo do qual muita gente se pode abrigar, à direita, à esquerda e ao centro, não funcionou tão bem como se previa. Está desgastada, mesmo que não esteja derrotada. O SPD arrisca-se a ter o seu pior resultado de sempre. Os dois juntos conseguem pouco mais do que 50% dos votos. A resposta às três questões fundamentais que hoje se colocam a quase todas as democracias europeias não é tão positiva como se esperava. O centro aguentou? Mal. Há alternativa entre os partidos do sistema? Por enquanto. Os extremos foram contidos? Não. E há um resultado incontornável, o mais preocupante de todos: pela primeira vez desde a fundação da República Federal (1949), um partido de extrema-direita entra no Bundestag. É um sinal de alarme, por todas as razões e mais uma: um partido de extrema-direita na Alemanha não é a mesma coisa que um partido de extrema-direita noutro país europeu. Com uma agravante: a linguagem da Alternativa para a Alemanha (AfD) radicalizou-se, passando a dizer coisas que começam a causar arrepios a quem as ouve. Passou a terceiro partido. A chanceler justificou muitas vezes as suas decisões sobre a crise do euro com a necessidade de impedir a ascensão de uma força política à sua direita. A AfD começou por se anunciar como um partido contra o euro mas não contra a União Europeia, como se fosse possível separar as duas coisas. Hoje, vai muitíssimo mais longe. É um partido contra o euro, contra a Europa, contra a democracia, já não escondendo a sua nostalgia do passado. A chanceler teve de fazer outra escolha difícil: abrir as portas aos refugiados porque esse era o dever moral da Alemanha, sabendo que corria o risco de insuflar o voto na extrema-direita. Agora, muita gente, sobretudo dentro do seu partido, irá acusá-la de ter contribuído para este resultado. Governou ao centro, calando as vozes críticas. Ontem, o primeiro a desembainhar a espada foi o líder da CSU da Baviera, o partido irmão da CDU: “Deixámos um vazio à direita, que temos de preencher com políticas que garantam que a Alemanha volta a ser a Alemanha.” É mais um problema que a chanceler tem de resolver nas negociações para a formação do próximo governo. Os resultados apenas lhe dão duas opções: “grande coligação” ou Jamaica, com os Verdes e os liberais. Mas, perante uma derrota histórica, o SDP pode decidir que o único caminho que lhe resta é a oposição.

2. A entrada da extrema-direita no Bundestag terá outro efeito negativo: aumentará as tensões internas num país cujo sistema político foi desenhado para forçar os consensos e impedir a concentração do poder. O sistema funcionou bem enquanto incluía apenas três partidos, ou quatro, quando os Verdes ganharam força eleitoral. Agora, o Parlamento tem seis, dois dos quais se situam fora de todas as coligações possíveis: a AfD e o Die Linke. Verdes e Liberais também foram mudando a sua identidade. O velho FDP, que foi durante muitos anos o “fazedor de chanceleres”, o que o obrigava a estar no centro, está hoje à direita da CDU. Os Verdes, que Joschka Fischer levou para dentro do sistema, passaram a ser, desde 1998, a alternativa ao FDP de que os sociais-democratas precisavam para formar governo. Mas os bons velhos tempos passaram, mesmo que a sua liderança actual não veja com maus olhos um entendimento com a CDU. Fazendo as contas, ainda há no Bundestag uma ampla maioria democrática. O problema é que parece estar em perda, enquanto pelo menos um dos extremos está em alta.

3. Resta o SPD que, desde 2005, não consegue regressar ao papel de alternativa que desempenhou desde a fundação da RFA. Não é um problema apenas alemão. Em muitos países europeus, o centro-esquerda tem vivido uma crise de identidade quase permanente. Tentou a “terceira via”, a que Gerhard Schroeder chamou “novo meio”, mas pagou um preço elevado por ela. Uma radicalização à esquerda, como o Labour de Corbyn, pode revelar-se tentadora. Martin Schulz preferiu ir à América buscar o modelo Sanders. Mas a tradição social-democrata, desde Bad-Godesberg (1959), vai no sentido da moderação e do reformismo.

4. A outra linha de clivagem é a Europa. Merkel, Schulz e os Verdes mantêm firmemente a rota europeia. O FDP renasceu da derrota de 2013 com um discurso menos europeu. A Europa terá de esperar para ver como é que a chanceler vai lidar com uma nova realidade, que pode afectar a sua margem de manobra europeia. Também aqui os resultados não foram os mais convenientes. 

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