“É bom que a pessoa a biografar esteja morta, a história já terminou”

Ao fazer a biografia de Nelson Rodrigues, Ruy Castro fez a biografia do Brasil. Chega agora a Portugal a história da vida de um homem a quem chamaram tarado e reaccionário.

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Anjo Pornográfico ajudou Ruy Castro a definir-se enquanto biógrafo e carioca e devolveu Nelson Rodrigues à lista dos grandes da literatura brasileira Miguel Manso

Ruy Castro não gravou nem uma das muitas conversas com as 150 pessoas com quem falou para reconstituir a biografia de Nelson Rodrigues, figura tão apaixonante quanto controversa do Brasil do século XX. Jornalista, cronista de política, futebol e costumes, autor de teatro, cinema, publicou dois romances, esteve ao lado do ditadura militar (1964-85), foi acusado de reaccionário e de misógino. Morreu em 1980 e a ambiguidade da sua personalidade deixou a sua vasta obra na sombra.

Dez anos depois, outro jornalista, Ruy Castro, publicou Anjo Pornográfico, a Vida de Nelson Rodrigues. Era a segunda biografia escrita por Castro e a primeira que dedicava a uma pessoa. Antes, em Chega de Saudade, escrevera sobre a história da Bossa Nova e punha fim à nostalgia à volta de um género musical para o devolver à actualidade.

Foi o acabou por fazer com Rodrigues. Bem recebido pela crítica, Anjo Pornográfico foi acusado de tentar limpar a imagem de um reaccionário, seria contestado pelas duas faces de uma família também dividida entre irmãs e viúva, mas trouxe Nelson Rodrigues de volta aos leitores. Nas conversas que não gravou, Castro quis apurar contradições e chegar a conclusões. Não queria que ninguém fingisse predicados e escolhesse adjectivos. Anotava na memória e depois no computador. Ouviu a tragédia que levou ao fecho do jornal de Mário Rodrigues, pai de Nelson, uma das primieras histórias de sexo e morte definidoras de Nelson. O resultado é um livro que ajudou Ruy Castro a definir-se a si mesmo enquanto biógrafo e carioca e devolveu Nelson Rodrigues à lista dos grandes da literatura brasileira, o homem que afirmou que entre o indivíduo e a humanidade que morra a humanidade!

Esta biografia tem 25 anos. Foi a primeira que vez que biografou uma pessoa. Nelson Rodrigues [NR] ensinou-o a ser biógrafo?

Ah, completamente. Embora depois nunca tivesse tido tantas facilidades. Eu conhecia o meio. Parti de 20 pessoas que conheciam bem o Nelson e cheguei a mais cem. E a partir do momento em que pega um fio de NR vem tudo ao mesmo tempo, a história praticamente se contava sozinha.

Era assim tão fértil?

Era, mas acidentado. Essa é a graça, percorrer esse chão acidentado. Você não consegue, por exemplo, biografar o Tom Jobim.

Porquê?

Não aconteceu nada na vida dele. A partir de certo momento, só o sucesso. De preferência o biografado tem de ter tido uma infância acidentada, uma vida de altos e baixos, o sucesso e o fracasso, ter tido experiência com a doença, com a morte, com o crime, ter sido preso; tem que ter amado, tem que ter traído. Houve isso tudo na vida do NR. É impressionante!

Conheceu-o.

Sim. Nunca fui amigo. Mas conheci estar no mesmo ambiente dele. Estive sozinho com ele só uma vez.

Entrevistou-o.

Sim. Uma longa conversa. Foi em 1977. Ele sempre foi um óptimo entrevistado, falava tudo, o mais surpreendente. Perguntava o que fosse e ele respondia. Parte da imprensa gostava de ter o Nelson como entrevistado. Mas isso não alterava em nada a visão geral que se tinha dele, o tarado e reaccionário.

Uma imagem que se mantinha quando, em finais de 80, enquanto escrevia Chega de Saudade, decidiu avançar para a biografia dele. Não era uma figura consensual.

Nada, nada. Era 1988/89. Era detestado pela esquerda. Era um autor de histórias escabrosas, fazia um teatro que provocava escândalo, tinha sido homem de posições políticas condenáveis na sua época. A figura dele sempre me intrigou e fascinou. Já contei que aprendi a ler com ele. Ele era muito confessional, contava um pouco a própria história e eu ficava intrigado e fascinado pela obra dele, com muita admiração pela maneira de escrever.

O que o fascinava mais nessa maneira de escrever?

Era diferente de tudo. Comecei a perceber isso no futebol. Era inteiramente diferente, uma prosa totalmente ornamental, os adjectivos surpreendentes, as ideias originais, uma maneira de escrever em que o jogo deixava de ter qualquer importância, o resultado, os acontecimentos. Era o que ele inventava.

Isso só se veio a descobrir depois, mas ele não enxergava nada do que estava acontecendo no campo, era muito míope e não usava óculos porque na cabeça dele era feio usar óculos. E como não enxergava o corpo dos jogadores, tinha de enxergar a alma. Era como uma ficção. E sempre enfatizando o lado trágico. Falava muito por alto do que tinha vivido, mas dizia coisas como: “Ninguém entenderá a minha obra sem saber o que aconteceu quando o meu irmão Roberto foi assassinado”. Não explicava mais. E deixava em aberto uma série de possibilidades. Aí, durante o Chega de Saudade comecei a me empolgar com a possibilidade de depois de narrar uma época fazer isso com uma pessoa só. O NR veio imediatamente à cabeça. Estava a meio da escrita do Chega de Saudade quando propus ao meu editor. Ele achou a ideia óptima. [Pausa] O Chega de Saudade é um voo rasante, não é um mergulho.

O que chama de voo rasante?

Você vai cobrir um espaço relativamente grande, envolvendo muitas pessoas, e vai ter um ou dois fios condutores, no caso, o João Gilberto, o Tom Jobim, um pouco o Vinicius [de Moraes], as pessoas mais importantes da história, cercadas por dezenas de coadjuvantes. Não tem a obrigação de mergulhar profundamente na vida de cada um. Só vai contar o que é do interesse geral da história. Pode até falar da vida pessoal, mas tem tudo a ver com aquele contexto.

No início do livro chama a atenção para o que é uma permanência na vida de NR e atravessa toda a sua obra: sexo e morte. Como é que estas duas facetas definem a personalidade de NR?

Sexo e morte são os dois grandes assuntos. Não só da ficção como da vida. E o Nelson experimentou-os cedo, o sexo como a morte. Sobretudo o que aconteceu com o irmão [Roberto, assassinado]. Foi uma história de morte e de sexo, a história da mulher que traiu o marido e que desencadeia aquela história toda. De repente, NR foi tuberculoso, passou anos no sanatório, podia ter morrido. O que tem isso a ver com o resto, ou com o sexo? Tudo. A tuberculose foi consequência da miséria em que a família foi jogada quando o jornal foi destruído; não tinham emprego e passaram fome, a fome já por si era doença, mas a doença da época era a tuberculose. Tudo isso provocado pelo assassinato do irmão por aquela mulher acusada de comportamento sexual errado. Não só nessa coisa do sexo e da morte que atravessou a vida e a obra dele, como também uma visão de mundo, a importância que ele dava ao indivíduo, ao ser humano. Ele tinha ideias muito bem definidas sobre isso, tinha frases assim: “Se eu tiver de escolher entre um indivíduo e a humanidade eu diria morra a humanidade!”; “o ser humano é mais importante do que a Via Láctea”. No futebol também: não acreditava em sistemas tácticos, nem esquemas de jogo; acreditava na jogada individual. Isso o levou a um individualismo feroz, a uma crença no indivíduo e no ser humano, a uma desconfiança e depois a um ódio profundo a qualquer tentativa de colectivização e pensamento do género onde se incluía o socialismo ou o comunismo, o que também definiu a posição política dele. Uma das maiores motivações tive para fazer a biografia é que eu queria reconstituir redacções de jornais do Rio dos anos 20. Tive a sorte de ainda encontrar pessoas daquela época. A busca do ambiente, dos detalhes é fascinante. Mas nada supera o que sente quando vai descobrindo as particularidades do seu personagem.

Nem sempre simpáticas.

Não. Eu queria saber as antipáticas também. A graça também está nisso. Parto de uma admiração total pela obra e uma grande curiosidade pela vida. De certa maneira a personagem começa num pedestal e a minha obrigação é a personagem descer do pedestal, descobrir o máximo de coisas terríveis sobre ela e ver se ela tem possibilidade de voltar sozinha ao pedestal. E aí não serei eu a colocá-la, será o leitor.

Isso faz ter a noção de que a obra é diferente do autor?

Sou contra descobrir o autor na obra. Começo dizendo que isto não é um ensaio biográfico. É uma biografia. Não estou aqui para interpretar a obra dele. Quando estou a ler, estou vendo, estou descobrindo, que todos aqueles maridos dominadores, tirânicos, temidos eram o pai dele. As tias solteironas, aquelas mulheres neuróticas e virgens, que não dormem para não ter sonhos erótico, são as irmãs.

Que o amavam exacerbadamente.

Não só a ele como a todos os irmãos. As irmãs Rodrigues amaram desesperadamente todos os seus irmãos e odiaram todas as mulheres que casaram com cada um deles. Sem excepção. E não era um ódio comum, era um ódio rodriguiano. Durante dois anos convivi com os dois lados. Eu ia de manhã para casa da D. Elza [viúva de NR], e à tarde para casa das irmãs. Conversava com a Helena, a mais esperta de todas e a que guardava os recortes da família, mas as outras iam junto. Um dia levei a Heloisa [Eloísa Seixas, escritora, mulher de Ruy Castro] porque tinha umas coisas noutro aposento que eu queria vê-las com sossego, mas tinha sempre uma em cima de mim me enchendo o saco... Levei a Heloísa para ela ficar conversando com as velhinhas.Ela participou em várias coisas. Eu conto a história do Roberto Rodrigues e da namorada que ele teve, a Dona Anita. Foi apaixonada pelo Roberto. Ele era casado, e quando ela se deu conta que ele não se ia separar da mulher, brigou com ele e ele foi morto dali a poucos meses. Ela nunca se conformou, ficou com a culpa e nunca recuperou dessa paixão. Só vim a descobri isso em 1990 ou 91, ou seja, 60 anos depois. E 60 anos depois fui conversar com aquela senhora e levei Heloisa comigo. D. Anita estava cega e contou como foi o romance, dando a entender que tinha vida sexual com o Roberto. O mais impressionante foi ela dizer: “eu t’ou cega há mais de 30 anos e a coisa que mais me doeu na cegueira é ter muitas fotos do Roberto e não podia mais vê-las, mas um um dia eu ‘tava pegando as fotos, tentava vê-las pelo tacto e eu vi, enxerguei... e eu não estava a creditando que estava enxergando o Roberto de novo. Isso durou uma semana até que a cegueira voltou, mas durante uma semana eu tive a graça de divina de voltar a ver o Roberto na minha frente”. Você ouve essas coisas... isso não está no livro.

Porquê?

Porque não faz parte da história. Isso aconteceu 60 anos depois da morte do Roberto, não interfere.

Mas continua no universo de Nelson Rodrigues.

O tempo inteiro. Aquela paixão meio incestuosa das irmãs pelos irmãos.

Conte a história deste título, Anjo Pornográfico?

Procurava achar um título na obra dele que tivesse a ver e eu pudesse adaptar. Quase um ano depois de ter começado peguei e reli pela décima vez uma entrevistinha dele para a revista Manchete em que começava: “eu sempre fui um garoto que viu o sexo pelo buraco da fechadura, sempre fui um anjo pornográfico”. Já tinha lido aquilo, mas de repente... E me lembrei da história que o Nelson contava do Otto Lara Resende [jornalista, colega de NR] que todo o dia saía de casa a caminho do Globo e passava em frente ao Pão de Açúcar e não via, nunca tinha visto, até que um dia viu, levou um choque e disse não era possível, que não estava ali no dia anterior e sai do carro, começa a apontar, engarrafa a rua; pensava-se que ele tinha tido uma crise de asma. Ele viu o óbvio e o Nelson escreveu o Óbvio Ululante [crónica que deu origem a um livro de 1965 com o mesmo título]. Eu cheguei ao óbvio ululante.

Este livro recuperou o nome do NR. Mas não foi imediato.

O livro teve uma gigantesca imprensa. Foi muito discutida a participação política dele, ajudar pessoas que estavam presas. Nada disso tinha sido falado e a compreensão do dramatismo da vida dele deu uma limpada imediata na figura, mas dali a 15 ou 20 dias começaram a sair os livros. As pessoas se apaixonaram e puderam fazer o confronto entre tudo o que dito na biografia e a obra dele que estava esgotada, fora de catálogo e muitos destes livros não existiam.

E chegou-se à conclusão que NR é rodriguiano.

Sim. As pessoas não tinham muita noção que a vida dele parecia uma história dele.

Está muito presente a ideia de identidade, não apenas a do biografado, mas do que é ser-se brasileiro.

A personagem dele é um carioca. Um paulista tem a visão da obra do NR muito parecida com a que um português teria, uma coisa meio estrangeira. O universo dele é um universo fundamentalmente carioca. Embora ele não fosse carioca; nasceu em Pernambuco, mas como todos os cariocas, não interessa onde nasceu, você se identifica. Acho que foi o João do Rio que disse que o carioca é um sujeito que nasceu em Belém do Pará ou Vitória do Espírito Santo, não interessa. Você é adoptado, quando vem você já é. Não nasci no Rio, mas nunca vivi fora do Rio.

Esta biografia ajudou-o a rever-se como carioca?

Não só essa como o Chega de Saudade. Depois o Garrincha [Estrela Solitária, 1995], depois o Ela é Carioca [1999] a história de Ipanema, depois Carmen [2005] e A Noite do Meu Bem [2015], que saiu há dois anos, e que estou fazendo agora e vai sair daqui a dois anos, que é a história do Rio nos anos 20. Não sei escrever sobre outro lugar. Cada um tem o seu cenário.

Li que só biografa pessoas mortas porque os vivos traem.

Não só isso. O primeiro defeito da pessoa viva é que a história dela não terminou. Você tem uma história redonda e de repente esss personagem faz uma falseta e a sua biografia fica desactualizada. O caso clássico nisso é do Woody Allen. Saiu uma biografia enorme dele em final de 91 (Woody Allen, a Biography, de Eric Lax) e daí a meses estourou a história da enteada. A história é tão surpreendente e inesperada que não tem nada com o que foi descrito nas 500 páginas. A personagem da biografia não faria o que ele fez.

É preciso rever a personagem toda.

Exactamente. Mas o cara não fez aquilo de uma hora para a outra. Já vinha dentro dele. Mas significa que você, biógrafo, não percebeu uma coisa importante que já vinha detrás. E a biografa está rigorosamente...

... ao lado?

É. Então é bom que a pessoa a biografar esteja morta, a história já terminou. Outro aspecto é que uma pessoa que mereça ser biografada terá certamente algum poder; se for um zero à esquerda não vai ser biografado jamais. Vai ter de ouvi-la e, como toda a pessoa, ela vai mentir, vai omitir... É um trabalho complicado. Se a pessoa está morta, você tem toda a liberdade de trabalhar. Se a familia não gostar, como raramente nãogosta, te processa, tudo bem.

Teve problemas com a família de NR?

As irmãs me detestaram. E a viúva também. Mas as irmãs não sabiam que a viúva estava furiosa comigo e vice-versa. O Jornal do Brasil publicou uma entrevista com as irmãs me acusando de muitas coisas, de as ter traído, de ficar ao lado da viúva. A viúva leu e ficou ao meu lado e me perdoou.

25 anos depois da biografia, como é que ele é visto no Brasil, a esquerda vê-o de outra forma?

Até a Dilma, até o Lula, citam Nelson Rodrigues. É impressionante! Nunca leram, mas citam. Muitas frases do Nelson deixaram de ser do Nelson. O “complexo de vira-lata”, uma série de expressões que criou e nos ajudaram a que nos entendêssemos como povo e como pessoas, tornaram-se moeda corrente e são citadas por todo o mundo independentemente da cor política. Nélson Rodrigues hoje faz parte da cultura brasileira como nunca fez.

Que figuras na política brasileira são mais rodriguianas?

Em 1968 ou 1969, quando Brasília ainda era uma novidade, já era capital do Brasil mas a capital de verdade ainda era o Rio, NR escreveu uma frase: “Em Brasília todos são inocentes e todos são cúmplices”. É o que estamos vendo. Essa frase é de uma actualidade monumental. 

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