Nunca um chanceler do pós-guerra teve tanto poder. O que fará com ele?

O historiador Tony Judt escrevia logo após a queda do Muro: “A Europa ou será alemã ou não será”. No final do seu quarto e último mandato saberemos a resposta.

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Michael Dalder/Reuters

É possível escrever o quarto perfil de Angela Merkel no dia em que os alemães vão, com toda a probabilidade, oferecer-lhe o quarto mandato? Há alguma coisa a acrescentar? A não ser que se prepara para igualar Helmut Kohl em número de anos na chancelaria. Alguém conseguiu antecipar que a “rapariga de Kohl” haveria de deter nas suas mãos mais poder do que gigantes como Adenaur, o fundador, Brandt, o herói da resistência impossível, Schmidt, o visionário, Kohl, o unificador de uma Alemanha que queria ser europeia? Ela, que não tem carisma nem dons oratório (hoje nem precisa de falar), nem grandes visões, nem gestos extraordinários? Em 2005, ainda não sabia bem o que fazer às mãos quando estava em cima de um palco. Em 2013, os cartazes da CDU limitavam-se a exibir as suas mãos. Que conviveu com quatro presidentes franceses e outros tantos presidentes americanos? Que levou a Europa à beira do abismo para, no momento seguinte, a resgatar?

A única certeza que temos é que há uma Europa antes dela e haverá uma outra Europa depois dela. A União Europeia mudou profundamente desde o dia em que foi pela primeira vez eleita chanceler. Mas ela não mudou menos. É essa a razão pela qual ainda pode ser possível ensaiar um quarto ratrato. Não o definitivo, mas aquele com que a Europa pode contar para enfrentar os enormes desafios que tem pela frente. Com ela aos comandos.

Há coisas que já sabemos e que podem ajudar a entender o seu extraordinário percurso. Que era filha de um pastor luterano que vivia em Hamburgo e que decidiu instalar-se no lado da Alemanha que ficara sob domínio soviético. Que o reitorado onde viveu a poupou, ainda que não muito, ao regime comunista da RDA, o mais opressor dos países europeus que ficaram do lado errado da História no final da II Guerra. Que estudou física e se doutorou em química quântica, porque a ciência era poupada à ideologia, mesmo que incluísse as aulas de marxismo-leninismo. Governa ainda hoje segundo um “método científico” que deixa os adversários perplexos. O seu último estudo como académica chama-se, em inglês, “Vibrational Properties of Surface Hydroxyls: Nonempirical MoModer Calculations Including Anharmonicies”. O melhor é mesmo não tentar ler.

As últimas eleições que venceu, em Setembro de 2013, esgotaram os títulos possíveis sobre quem é verdadeiramente a chanceler. A “rapariga de Kohl” que se transformou na “mãe” protectora. “Mutti ou Merkievelli”? “Salvadora ou coveira?” Frau Europa? Falta saber se a Europa que deixará em herança não é apenas uma Europa alemã. Daqui a quatro anos, será mais fácil encontrar o título para o seu último perfil. A partir daí as universidades podem começar a produzir ensaios sobre a sua forma, absolutamente fascinante, de exercer o poder.

Têm medo

Na própria noite eleitoral de 2005, quando venceu por uma margem mínima o SPD de Gerhart Schröeder e os Verdes de Joschka Fischer, os dois, de forma grosseira, gozaram com a sua fraca figura e apostaram em que nem sequer cumpriria a legislatura. Nos clubes do mais conservador e mais masculino de todos os partidos da RFA, a CDU, a conversa era sobre “qual deles iria acabar com ela”. Não levaram muito tempo a perceber que “ela” engolia tranquilamente homens-fortes ao pequeno- almoço, misturados nos cereais. Vladimir Putin ou Receep Erdogan haveriam de aprender o mesmo à sua própria custa.

Ela olhava os seus exageros como “tristes sinais de fraqueza” e, mal davam por isso, anulava-os com seu eterno sorriso levemente irónico. Quando visitou o Presidente russo na Dasha de Sochi (em 2007), Putin entrou na sala onde a chanceler o aguardava acompanhado de um enorme cão negro. Sabia que ela tinha “pânico” de cães depois de uma má experiência. Merkel ficou imperturbável. Os seus assessores estavam furiosos. Ela não. Explicou-lhes que sabia o que ele estava a fazer: “Tenta provar que é um duro porque tem medo da sua própria fraqueza”. Putin descobriu que a chanceler que tinha medo de cães conseguia dizer a seu lado aos jornalistas sem um gesto a mais, que o Presidente russo cometera “um crime”, ao violar as leis internacionais. Quem a subestimou, e foram muitos, acabou por pagar um preço elevado. Maquiavélica?

“Apunhalou” o seu mentor político, que lhe dera a mão e fizera dela uma figura pública, sem a menor hesitação. Em 1998, Kohl viu-se envolvido num escândalo de financiamento partidário. Ela publicou um artigo na primeira página do Frankfurt Allgemein Zeitung, desafiando o seu partido a seguir em frente, cortando com o velho “cavalo de batalha”. Kohl nunca lhe perdoou. “Criei a minha própria assassina”.

Mulher no partido mais conservador, mais católico e mais masculino da Alemanha. Prussiana e protestante num clube renano e católico. Vinda do Leste, que as elites ocidentais ainda olhavam como cidadãos de segunda.

Chega para dizer quem é? Ajuda. Mas não desfaz o enigma. Passou incólume pelo regime comunista da RDA, o mais fechado e o mais policial de todos os países da Europa de Leste. Não lutou? Não. Escolheu deliberadamente uma profissão em que tratava de factos tangíveis como a Química Quântica. Pecado? Na RDA nunca houve espaço para a dissidência que noutros países permitiu os Havel, os Walensa, os Dubchek, os Sakharov. Habituou-se a ser discreta e a ser feliz com pouco.

Talvez nada como o seu sonho de juventude para entender o mundo em que ela viveu. Meteu-se-lhe na cabeça que queria ir à Califórnia. Sabia que a autorização só viria a partir dos 60 anos, idade a partir da qual o regime pensava que já ninguém queria desertar. Começou a juntar dinheiro para realizar esse sonho.

Na noite em que o Muro caiu, saiu da Academia das Ciências onde trabalhava e fez o que sempre fazia às quintas-feiras: ir à sauna e beber uma cerveja com os amigos. Só depois foi festejar. A sua segunda vida estava prestes a começar. Tinha 35 anos.

O início de tudo

Juntou-se ao pequeno grupo político Alvorada Democrática, que era o braço da CDU em Berlim. No único governo democrático da RDA, que apenas durou um ano até à unificação, o primeiro-ministro, Lothar de Maizière, chamou-a para vice do seu porta-voz, que, azar do azares, tinha medo de andar de avião e não sabia línguas, numa altura em que as negociações da unificação entravam num ritmo alucinante. Ela fala russo e inglês na perfeição. Tornou-se indispensável.

Teve de abdicar das sandálias à Jesus Cristo e das saias demasiado pingonas. Hoje, veste os célebres conjuntos de calça e casaco que pouco variam a não ser na cor e que se tornaram a sua imagem de marca, e o seu cabelo louro e curto já não é cortado à tijela. Desfila pelos palcos do mundo entre fatos cinzentos que a rodeiam, desejoso de captar a sua atenção. Mas a simplicidade continua a prevalecer na sua vida privada. Vive na mesma casa alugada num antigo bairro boémio de Berlim Ocidental, Prenzlauer Berg, mesmo junto ao Muro. Vai ao supermercado. “Não fuma, não bebe, o seu vício é o poder”.

O seu círculo próximo na chancelaria é fechado. Os seus amigos são poucos e de longa data. Tem um enorme sentido de humor que deixa vir ao de cima nos encontros com os jornalistas ou com os amigos. As suas imitações de vários líderes mundiais, de Putin a Sarkozy, passando por Berlusconi ou até por Bento XVI, são perfeitas.

Esta mistura improvável, somada a uma vontade férrea, ajuda a compreender como sobreviveu à maior crise da Europa, liderando-a quase sem concessões. Cultiva como ninguém a ambiguidade. E ninguém sabe ao certo, nem Macron, qual vai ser a sua política europeia, a não ser que moldará, para o bem ou para o mal, o futuro da Europa. Hoje, muitos líderes europeus que aprenderam a conhecê-la melhor, confiam nela, para lá de todas as divergências.

A Europa já tinha começado a mudar quando o Muro caiu e uma grande Alemanha emergiu (de novo) no centro do continente. Maastricht e o euro ou o Tratado de Lisboa e o Tratado Orçamental foram, no essencial, respostas sucessivas à velha questão alemã. Ela aproveitou a crise como a grande oportunidade para moldar a integração europeia ao novo estatuto da Alemanha. Por vezes, levou a Europa quase à beira do abismo. Recuou a tempo. Hoje já sabemos qual é o seu método: fazer o mínimo possível no último momento. Foi, às vezes, um tremendo jogo de nervos.

Posta à prova

Quando, em Dezembro de 2005, chegou pela primeira-vez ao Conselho Europeu foi uma lufada de ar fresco. Entrou sorridente, com o seu fato preto apenas iluminado por uma fiada de pérolas. A Europa ainda não encaixara o choque da rejeição da Constituição europeia (uma iniciativa que partiu de Berlim) pela França e pela Holanda. Tony Blair, que presida ao Conselho, preparava-se para um estrondoso fracasso das negociações do orçamento comunitário para 2007-2014. Estavam bloqueadas pelo braço-de-ferro entre Londres e Paris por causa da rebate britânica e da PAC francesa.

Merkel chegou, ofereceu 20 mil milhões a cada um e encontrou mais uns pozinhos (que foi buscar à quota da Alemanha) para calar a Polónia. Os europeus viram nela a herdeira de Kohl, com o seu eterno livro de cheques para manter feliz uma Europa que olhava como absolutamente vital para o interesse alemão. Puro engano. Merkel não via a Europa como a segunda pele da Alemanha, como viram os seus antecessores. Mas também não concordava com Schröeder, que anunciou logo em 1998, que o seu país passava a ser “tão normal” na defesa dos seus interesses, “como o Reino Unido ou a França”. Ainda hoje não perde uma oportunidade para lembrar os 60 milhões de mortos e o Holocausto que o seu país infligiu à Europa e ao mundo.

Foi a crise do euro que a pôs à prova. Não percebeu imediatamente o que estava em causa. Começou por negar o impacte da crise financeira na Europa, dizendo que era um problema da América e das suas loucuras. Quando Obama, Gordon Brown ou Hu Jintao lhe imploraram que injectasse dinheiro na economia para tentar travar uma nova Grande Depressão, ignorou-os. Só em 2009, quando a banca alemã começava a dar sinais preocupantes, com os grandes bancos envolvidos nas “loucuras financeiras” da América, percebeu que não podia continuar a teimar. Quando a crise atingiu em cheio os países mais vulneráveis da Europa, estilhaçando a coesão da zona euro, agarrou-se à cláusula do no bailout inscrita em Maastricht, dizendo, de novo, que não era nada com ela. Em Maio de 2010, só quando a Grécia estava à beira da falência, deu relutantemente o passo que faltava, salvando-a in extremis. Aproveitou a crise para fazer duas coisas: dar à Alemanha um poder decisivo sobre a Europa e transformar a zona euro numa extensão da economia alemã. Cedeu apenas no que era absolutamente necessário. Ignorou as aflições dos sucessivos presidentes franceses, que preferiram fingir que se entendiam com ela do que a humilhação de não terem escolha. Eliminou qualquer adversário que chegasse de novo ao Conselho Europeu disposto a virar a mesa. A austeridade foi imposta à bruta. “Despachou” primeiros-ministros como Papandreu ou Berlusconi com um total à vontade. Foi o “momento unilateral” da Alemanha. Com ela, o seu país passava a ser a “potência indispensável”.

Houve momentos de imensa tensão em que a História, como sempre acontece na Europa, se intrometeu no debate de uma forma muito injusta para a chanceler. Desde o “IV Reich” ao bigode de Hitler, o passado da Alemanha estava ali, pronto a ser desenterrado. Mas também ajudou a alimentar velhos preconceitos, que se aproximam da xenofobia, em relação aos países do Sul, abrindo feridas que ainda hoje não estão completamente curadas. Salvou o euro, talvez da única maneira possível. É difícil apagar o lastro de sofrimento que a austeridade provocou. O futuro da Europa ainda está à prova. A chanceler ainda não mostrou todas as cartas. Mas hoje há mais algumas razões para admitir aquilo a que Wolfgang Munchau, o editorialista do Financial Times, se agarrava, de cada vez que as coisas corriam muito mal e já não sabia o que escrever: “Merkel não quer ficar na História como a chanceler alemã que veio do Leste para acabar com a União Europeia”. Que Europa é que quer? É a pergunta seguinte, à qual Merkel tem agora o seu último mandato para responder. Aprendeu muito. Corrigiu muitas coisas.

A liderança tem custos

A segunda grande mudança da chanceler aconteceu no dia em que a Rússia ocupou a Crimeia e interveio militarmente na Ucrânia. Até aí, via o mundo através das lentes da economia. Começou por ver o seu país como uma espécie de “potência emergente” no sistema internacional, distanciando-se das potências aliadas. O caso da Líbia foi o mais visível. Quando Hollande teve de intervir no Mali para conter o avanço das milícias islamistas, deixou cair com desprezo: “Não tenciono financiar as guerras da França”.

Hoje já percebeu que se enganou. Tropas alemães estão no Mediterrâneo a apoiar a luta contra o Daesh. Os atentados terroristas de Paris e de Nice marcaram-na profundamente. Mas a sua maior prova de fogo foi em 2014, com a crise ucraniana e a ocupação da Crimeia. Não foi fácil ganhar a opinião pública alemã, pacifista pelas razões que sabemos. Muitos países europeus apenas queriam prosseguir os seus negócios e garantir o abastecimento energético. Foi fácil o entendimento com Obama, que começou muito mal em 2009 e acabou muito bem em 2016. Passou a olhar para o nacionalismo agressivo de Putin como uma verdadeira ameaça. Há coisas sobre as quais não tem dúvidas. Putin comporta-se como um agente do KGB. A NATO e a relação transatlântica, apesar de Trump, continua a ser fundamental para a Europa.

O seu melhor momento

Ainda estava para chegar o seu melhor momento. Quando, em 2015, milhões de refugiados tentavam chegar à Europa fugidos da guerra da Síria e do Iraque, abriu-lhes as portas de par em par. Não consultou os parceiros. Desafiou os alemães a cumprirem o seu dever moral. Foi o seu “Yes, we can”. Sabia que a sua decisão seria impopular. Temia um aproveitamento da extrema-direita, que a Alternativa para a Alemanha (AfD) encontrasse um novo impulso. Salvou a honra da Europa e foi fiel aos seus valores. “Estou determinada a não voltar a ver mais barreiras destas levantadas na Europa durante o meu tempo de vida”.

Se a chanceler tem uma convicção ela é a liberdade. Quando fala dela, brilha. Em 2009, quando foi convidada por Obama a dirigir-se ao Congresso, convite raro a um líder estrangeiro, o seu tema foi a liberdade. “A dignidade humana deve ser inviolável. Com a eleição de Trump, Obama foi entregar-lhe o manto e o ceptro de líder do mundo livre. A “mulher mais poderosa do mundo” sabe demasiado bem que isso é absolutamente impossível. Nem sequer a Europa está em condições de substituir a América e esse é, talvez, o maior drama que o mundo hoje enfrenta. Tony Judt escrevia logo após a queda do Muro: “A Europa ou será alemã ou não será”. Daqui a quatro anos saberemos a resposta.

 

 

 

 

 

 

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