Dias de horror para os rohingya

Há 176 aldeias rohingya desertas e 400 mil pessoas em fuga da Birmânia para o Bangladesh. A ONU fala em “limpeza étnica”. Um grupo que fugiu da aldeia de Maung Nu testemunha a violência do Exército e conta como sobreviveu na floresta, comendo folhas de bananeira.

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Os soldados chegaram à aldeia birmanesa de Maung Nu pouco depois das 8 da manhã e vinham preparados para a guerra. Dispararam primeiro para o ar mas depois apontaram para as pessoas que fugiam, disparando indiscriminadamente. Deixaram mortos e feridos sobre os arrozais. Era a vingança dos militares pelo ataque de militantes rohingya a postos de polícia, que ocorrera umas horas antes.  

O agricultor Mohammed Roshid ouviu os tiros e pôs-se em fuga com a mulher e os filhos, mas o seu pai, de 80 anos e dificuldades de locomoção, não teve a mesma sorte. Roshid diz ter visto um soldado a agarrá-lo e a cortar-lhe a garganta com tal ferocidade que quase o decapitou.

“Queria voltar para trás e tentar salvá-lo, mas a minha família não me deixou porque eram muitos soldados”, conta Roshid, de 55 anos. “Não ter podido fazer nada pelo meu pai foi o momento mais triste da minha vida.”

A “operação de limpeza” do exército birmanês em Maung Nu, e em dezenas de outras aldeias povoadas pela minoria rohingya, levou à fuga de cerca de 400 mil pessoas para o Bangladesh e já foi classificada pelas Nações Unidas como uma “limpeza étnica”. Espera-se que nos próximos dias o número de refugiados aumente. Os que já estão no Bangladesh – exaustos, agarrados aos parcos pertences, alguns descalços e com lama pelos tornozelos – encheram completamente um campo e construíram abrigos improvisados. Há quem simplesmente se sente nas bermas das estradas e multidões acotovelam-se quando grandes camiões de assistência despejam sacos de arroz e garrafões de água.

As organizações de direitos humanos dizem que vão ser precisos meses, ou até anos, para se conhecer verdadeiramente a devastação que obrigou tantas pessoas a fugirem da Birmânia – a minoria rohingya é considerada população imigrante oriunda da Índia e Bangladesh. Fotografias de satélite mostram vários incêndios, testemunhas relatam que os soldados mataram civis, e o próprio Governo admite que 176 aldeias rohingya estão agora desertas. Ainda não há uma contagem das vítimas porque o acesso à área continua vedado pelos militares.

Quase uma dúzia de rohingyas que escaparam da aldeia de Maung Nu fizeram um relato das últimas horas que passaram nas suas casas e da longa jornada que se seguiu. Durante dois dias, foram entrevistados no campo de refugiados de Kutupalong, perto da fronteira do Bangladesh com a Birmânia, onde chegaram na semana passada. A Fortify Rights, uma organização de direitos humanos que se foca no Sudeste Asiático, estima que o número de mortes em Maung Nu e em três aldeias vizinhas ascende a 150.

“Não sei dizer quantos foram”, lamenta Soe Win, professor do secundário. “Todos nós vimos o que os militares fizeram. Mataram-nos um por um. E o sangue começou a escorrer pelas ruas.”

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O discurso de Suu Kyi

A mais recente onda de violência começou a 25 de Agosto, quando um grupo emergente de militantes rohingya, o Exército de Salvação Rohingya de Arracão, atacou dezenas de postos avançados da polícia em todo o estado de Rakhine, matando 12 pessoas. A subsequente repressão militar levou centenas de milhares de refugiados a abandonar a Birmânia, país de maioria budista e até há pouco tempo governado por uma junta militar, onde os rohingya há muito enfrentam a negação da cidadania e de outros direitos.

O Comité Internacional de Resgate, organização que ajuda populações em zonas de guerra, estima que um total de 500 mil pessoas acabarão por fugir para o Bangladesh, o que corresponde a metade da população rohingya da Birmânia, a maioria da qual vive no estado de Rakhine. Há muito que a zona é palco de tensões entre os budistas e os apátridas rohingya, que embora lá vivam há séculos, ainda são considerados pelo Governo como imigrantes ilegais.

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A crise tem provocado protestos generalizados e a condenação da Birmânia e da sua líder de facto, Aung San Suu Kyi, laureada com o Nobel da Paz – só esta semana Suu Kyi se pronunciou sobre a situação dos rohingya não usando em momento nenhum do seu discurso o termo “rohingya” mas “muçulmano”, disse estar “preocupada com o número de muçulmanos que fugiram para o Bangladesh”, que não teme “o escrutínio internacional” e escusou-se a criticar as operações militares em Rakhine. O alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos, Zeid Ra'ad al-Hussein, chamou ao sucedido “um exemplo flagrante de limpeza étnica”.

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“Bengalis, saiam de casa”

Em Maung Nu, minúscula aldeia de 750 casas nas margens do rio Mayu, os rohingya viviam há muito tempo em relativa paz e tomavam chá com os seus vizinhos budistas, afirmam os entrevistados. Mas essa coexistência pacífica acabou após os ataques dos insurgentes rohingya. A repressão militar tem sido incessante deste então e ainda na semana passada o fumo negro no horizonte era visível desde o Sul do Bangladesh.

Mohammed Showife, um mecânico de automóveis de 23 anos, relata que no primeiro dia do assalto ele e a família tinham acabado as orações matinais e estavam a preparar o arroz quando três soldados apareceram no quintal, anunciando sua chegada com uma salva de metralhadora, e lhes disseram que tinham de abandonar as suas casas imediatamente.

“Bengalis, saiam de casa. Podem ir para onde quiserem, mas não podem viver aqui”, disseram os militares, segundo Showife.

Na fuga, separou-se dos familiares e parou para ajudar o vizinho Mohammed Rafique, de apenas 17 anos, que vira uma bala atravessar-lhe completamente a anca. Correram por entre uma multidão que saqueava casas e soldados; estes levavam lança-morteiros ao ombro e incendiavam outras habitações. Procuraram abrigo na selva, usando a folhagem luxuriante e densa após as monções como esconderijo. Aí chegados, algumas mulheres soluçavam silenciosamente, enquanto outros olhavam em redor, sem saber o que fazer. Tentaram tratar a ferida de Rafique com água fervida e trapos rasgados das roupas.

A primeira noite chegou, trazendo consigo uma inquietante escuridão, esbatida apenas pelos pontos de fogo e sombras que cintilavam no céu. Não sabiam nesse momento que outras cinco noites assim se seguiriam.

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Corpos empilhados

No segundo dia, o empresário Mohammed Zubair, que se escondera em casa, recebeu uma chamada de um sargento alto e magro que todos conheciam e a quem chamavam “Bajo” e com quem havia jantado muitas vezes. “Bajo” disse-lhe que os militares iriam requisitar um dos seus barcos de passageiros e, dadas as circunstâncias, Zubair, de 40 anos, não achou que tivesse outra opção que não fosse obedecer. Mandou o capitão do barco entregá-lo no pequeno cais da base militar, onde os oficiais receberam as chaves com um aviso para o capitão: “Também vais ser morto.” O condutor do barco acabou por conseguir escapar ileso, juntando-se ao resto da população em fuga.

Zubair conta que seguiu os militares para saber o que iriam fazer com o seu barco e que ficou em choque quando os viu começar a empilhar corpos na embarcação, um após outro, como se fossem troncos de madeira. Nesses corpos incluíam-se os de dois rapazes de 13 anos que conhecia bem. “Aquela visão fez-me desmaiar”, diz Zubair. Acredita que os corpos tenham sido lançados ao rio.

No terceiro dia, a mãe de Rafique, Khalida Begum, de 35 anos, desesperada por notícias do filho, cansou-se de saltar de casa em casa com os seus outros quatro filhos. Educara-os sozinha depois da morte do marido há vários anos, trabalhando como costureira para os sustentar. Conseguiram chegar à selva, onde viu Rafique estendido e imóvel junto a uma árvore. Correu para ele, enchendo alegremente a sua cara de beijos, enquanto ele despertava da sua confusão febril. Estava tão desorientado que a princípio nem reconheceu a mãe, mas pouco depois estavam abraçados a chorar.

Ao sexto dia, os habitantes de Maung Nu decidiram em conjunto começar a andar para norte, em direcção à fronteira com o Bangladesh, temendo que o perigo se intensificasse.

Caminharam durante oito dias em condições muito adversas, alimentando-se de folhas de bananeira e bebendo água de riachos. No meio do choro das crianças, Showife carregou Rafique às costas, enquanto o adolescente alternava entre períodos de consciência e perda dela. As pernas dos viajantes começaram a inchar.

Chegaram finalmente a um cruzamento, no topo de uma colina, onde um simples pilar anunciava que tinham cruzado a fronteira do Bangladesh. Eram 16h30 e chovia. À sua frente, uma nova cidade de refugiados, milhares de tendas temporárias, postes de bambu cobertos por lonas de plástico preto.

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Ao descerem a colina tentando não escorregar na lama, sabiam que os esperavam tempos difíceis. Durante os dias seguintes, fechar os olhos equivaleria a ver os corpos inertes dos vizinhos e a ouvir o estrondo dos tiros junto ao ouvido.

Mas naquele pilar surgiu um pouco de alegria.

“Senti-me tão contente”, conta Khalida Begum. “Estava maluca, estava extasiada. Pensei que finalmente estávamos em segurança.”

Ao lembrar esse momento dias depois, os olhos de Khalida enchem-se de lágrimas. Era a primeira vez que se permitia acreditar no que os que tinham retirado Rafique da aldeia lhe diziam: que o seu filho iria sobreviver.

Exclusivo PÚBLICO /The Washington Post. Tradução de António Domingos
Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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